A proteção do investimento estrangeiro na área da energia

Qual a razão de ser deste regime, aparentemente benévolo para os investidores estrangeiros e limitativo para os Estados recetores do investimento?

A aprovação do último Orçamento do Estado ficou marcada pelo chamado episódio da "taxa das renováveis". Estava em causa a proposta de criação de uma denominada "Contribuição Solidária para a Extinção da Dívida Tarifária do Sistema Elétrico Nacional", a qual, em traços gerais, consistiria numa taxa de 30% a aplicar sobre a diferença entre o preço de mercado da eletricidade e o preço atualmente garantido, sendo aplicável aos produtores de energia renovável que, nos termos da lei, beneficiam atualmente de um regime de remuneração garantido.

Esta proposta acabou por não ser aprovada pela Assembleia da República. Entre outras razões, foram invocados "riscos jurídicos", dando-se como exemplo a situação da vizinha Espanha que, na sequência de um conjunto de "medidas de austeridade" que tiveram por efeito a retirada de um conjunto significativo de apoios dados aos produtores de energia renovável, se vê presentemente a braços com mais de 30 processos de arbitragem internacional, no valor total de vários milhares de milhões de euros (situação que, embora em menor grau, afeta também a República Checa e a Itália).

Com efeito, na década passada, muitos Estados, entre os quais Portugal, instituíram, nomeadamente por influência da União Europeia e no quadro do combate às alterações climáticas, regimes de incentivo ao desenvolvimento das energias renováveis, com o objetivo de diminuir a dependência dos combustíveis fósseis e as emissões de carbono e tendo presente que estavam em causa, na altura, tecnologias nascentes e pouco competitivas. Esses incentivos trouxeram um volume muito significativo de investimento e um notável desenvolvimento tecnológico. Contudo, em face da crise financeira global, vários Estados retiraram ou diminuíram, em moldes diferenciados, os referidos incentivos, dando origem a um número muito significativo de litígios entre investidores e Estados que receberam os investimentos em causa.

Neste contexto, e porque a discussão pública sobre o tema nem sempre tem sido rigorosa, visa o presente texto dar uma breve explicação sobre o atual sistema internacional de proteção de investimento estrangeiro na área da energia, tomando por referência, por razões de simplificação, o denominado Tratado da Carta da Energia ("TCE").

O TCE é um tratado internacional multilateral do qual são partes, atualmente, mais de 50 Estados, entre os quais se conta grande parte dos Estados europeus, incluindo Portugal, e a própria União Europeia. Curiosamente, foi assinado em Lisboa, em 17 de dezembro de 1994, tendo entrado em vigor em abril de 1998.

Em particular, o TCE estabelece (i) normas relativas à promoção e proteção de investimentos que vinculam os Estados perante os investidores estrangeiros e (ii) normas relativas à resolução de litígios, conferindo aos investidores estrangeiros a possibilidade de submeterem eventuais litígios diretamente a arbitragem internacional, consagrando um sistema hoje vulgarmente conhecido pelo acrónimo "ISDS", que significa "investor-state dispute settlement".

Quanto às primeiras normas, destacam-se, entre outras, a proibição geral de expropriação, direta ou indireta (salvo se para fins de interesse público, não discriminatória, nos devidos termos da lei e acompanhada de indemnização adequada) e a regra que estabelece a obrigação de os Estados conferirem aos investidores um “tratamento justo e equitativo”. 

Assim, o comportamento dos Estados, expresso nomeadamente em leis, regulamentos ou decisões, pode ser sindicado, a pedido de um investidor estrangeiro, por um tribunal arbitral internacional, independente dos tribunais nacionais, o qual apreciará, por exemplo, se a conduta do Estado violou o referido tratamento justo e equitativo e, se for caso disso, poderá condenar o Estado no pagamento de uma indemnização.

Em regra, as situações de modificação dos regimes regulatórios observados na área das energias (no sentido da redução ou retirada de apoios preexistentes) têm sido fundamentalmente apreciadas à luz da regra do "tratamento justo e equitativo".

O significado preciso do termo "tratamento justo e equitativo" é controvertido e tem vindo a ser densificado pela jurisprudência arbitral. Trata-se de um princípio flexível cuja concretização depende de uma averiguação detalhada das circunstâncias específicas do caso concreto, exigindo-se, em especial, uma conduta transparente, razoável, proporcional e de boa-fé por parte do Estado recetor do investimento. Neste contexto particular, o seu núcleo central situa-se na denominada "proteção das legítimas expectativas" dos investidores quanto à estabilidade do quadro regulatório em que operam.

Tal não significa, porém, que os investidores estrangeiros tenham necessariamente direito à "cristalização" de certos regimes regulatórios ou que os Estados não possam regular no interesse público, mesmo se afetando, nalguma medida, as expetativas dos investidores. Simplesmente, esse poder de regulação tem limites (auto)impostos pelo TCE, os quais se impõem com especial intensidade nos casos em que os Estados tenham dado garantias particulares, nomeadamente através de contratos, quanto à manutenção de um certo regime regulatório, bem como nas situações em que o impacto das alterações introduzidas é significativo, desrazoável e desproporcionado. Cabe, em cada caso, à jurisprudência arbitral a definição do ponto certo de equilíbrio entre, por um lado, a proteção das expetativas dos investidores e, por outro, o direito dos Estados a regular.

Tudo visto, poderá perguntar-se: qual a razão de ser deste regime, aparentemente benévolo para os investidores estrangeiros e limitativo para os Estados recetores do investimento?

De um lado, a satisfação adequada das necessidades energéticas das populações exige a realização de investimentos muito avultados que os Estados, por si só, não têm capacidade de fazer, sendo necessário recorrer a investimento privado e, em particular, a investimento estrangeiro.

De outro lado, os investimentos no setor da energia são particularmente vulneráveis a "riscos políticos e regulatórios", o que pode inibir ou encarecer o investimento privado. É uma área muito sensível, dependente de decisões políticas, com repercussões na generalidade das pessoas, implicando um elevado investimento inicial e a respetiva amortização progressiva ao longo de prazos prolongados, aumentando o período de exposição ao risco.

Ora, o principal objetivo do TCE neste domínio é precisamente o de resolver esta tensão, mitigando o risco político e regulatório, por forma a promover o investimento estrangeiro e a baixar o respetivo custo, pois a remuneração exigida pelos investidores pondera, naturalmente, o risco a que está sujeita.

Ao subscrever o TCE, os respetivos Estados contratantes aceitaram voluntariamente autolimitar os seus poderes, tendo por base a constatação fundamental de que o setor da energia tem caraterísticas particulares que recomendam especialmente, e por razões de interesse público, a existência de um regime de proteção do investimento estrangeiro que garanta uma certa previsibilidade e estabilidade no quadro regulatório aplicável aos investidores. No caso português, trata-se, além do mais, de um aspeto fundamental para a atratividade do investimento estrangeiro.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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