A cronologia do vazio

O número de bolseiros sem bolsa continua a aumentar e os concursos continuam sem abrir.

Há décadas que, em Portugal, a Ciência está sustentada pelo trabalho de investigadores que à luz da lei não são considerados trabalhadores. São bolseiros, a quem os sucessivos governos fazem o favor de atribuir subsídios de manutenção mensal. A 29 agosto de 2016 foi publicado o decreto (DL57) destinado a estimular o emprego cientifico e tecnológico, que é chamado posteriormente para (re)apreciação na Assembleia da República (concluída a 11 de maio de 2017). A 19 de julho de 2017 é finalmente publicada a Lei 57/2017, que altera o DL57. Daqui deveria ter resultado a abertura de concursos para a contratação de doutorados até 31 de dezembro de 2017. Desde o início do processo até ao dia de hoje, o número de bolseiros sem bolsa continua a aumentar e os concursos continuam sem abrir.

Hoje, 13 de dezembro de 2017, cumprem-se 100 dias de vazio. Cem dias sem um único concurso para que os bolseiros possam passar a trabalhar com um contrato de trabalho. Marcam-se, também, os 321 dias desde a entrada em vigor do “regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico e tecnológico”.

A cada dia que passa, há uma bolsa que termina, há um bolseiro no limbo legal de não estar desempregado, porque empregado não era, mas no inferno real de estar sem remuneração, há um concurso por abrir e mais uma promessa por cumprir.

A 14 de novembro de 2017, na Assembleia da República, o ministro Manuel Heitor disse que deu “orientações expressas à FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia], que no quadro do financiamento plurianual às Unidades de Investigação deveria resolver todos os casos de eventuais bolseiros que acabassem as bolsas, entretanto, e pelo facto de os concursos não estarem abertos, para terem o financiamento necessário para não serem de forma alguma afetados por atrasos pontuais na abertura dos concursos”. Perante a falta de resposta da FCT, a 27 de novembro de 2017 a Associação de Bolseiros de Investigação Científica pediu um esclarecimento ao ministro, que responde, no próprio dia, com cópia do despacho dessas “orientações expressas”, com data de 27 de novembro e assinatura digital do ministro. Membro do Ministério do Tempo, Manuel Heitor assina no futuro o que declarou assinar no passado. Não só o faz, como altera o seu texto para “recomenda-se que a FCT adote a orientação estratégica de garantir a elegibilidade das despesas que permitam às instituições alcançar as soluções adequadas ao financiamento dos doutorados cuja relação contratual tenha, entretanto, cessado”.

Terá o ministro faltado à verdade? Claro que faltou. Mas qual verdade? A conformidade do dito com o feito? Mesmo para um viajante no tempo isso pode não ser fácil de resolver, pois consta que o regresso ao futuro é atribulado. Por isso exige-se uma solução simples e livre de paradoxos no espaço-tempo: cumprir o prometido e a lei.

Mas existem outros vazios que importa preencher: a inexistência de novos projetos; a ausência de novas contratações de doutorados — 2017 é o primeiro ano, em muitos, em que não houve nenhum concurso para a contratação de doutorados; e o vazio da avaliação das Unidades de Investigação, de cujos resultados depende o financiamento das instituições nos próximos anos.

É urgente que o estímulo ao emprego científico e tecnológico se concretize porque, até agora, apenas temos assistido à sucessão de um vazio repleto de caos, injustiça e desesperança. Associação dos Bolseiros de Investigação Científica

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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