Da hostilidade à hospitalidade

É essencial que exijamos que qualquer medida de regulação da circulação de pessoas seja compatível com os direitos humanos.

“O amor pelo nosso país é uma coisa maravilhosa. Mas por que deve o amor parar na fronteira?”
Pablo Casals

Hostilidade e hospitalidade são dois conceitos foneticamente semelhantes, mas que não podiam ser mais antitéticos. As constantes violações dos direitos humanos face aos refugiados levam-me, enquanto responsável pelo Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), a fazer uma breve reflexão sobre a hostilidade exercida sobre estas pessoas e, em oposição, sobre a importância de trazer para o espaço público a ideia da hospitalidade como valor fundamental a defender e a colocar em ação nas nossas sociedades. A hospitalidade tem sido a bandeira sobre a qual se encontram várias dimensões do trabalho a favor das pessoas migrantes que o JRS desenvolve.

É importante, antes de mais, começar por refletir sobre o próprio conceito de fronteiras. Estas converteram-se em lugares de dor e morte, representando o conceito em si mesmo um duplo paradoxo. Por mais altas e reforçadas, as fronteiras não param o fluxo de migrantes. Os muros têm maior poder simbólico do que efetivo, mantêm a aparência de controlo, mas sabemos que as políticas de controlo são muito ineficazes. Sabemos, igualmente, que perante uma fronteira física ou simbólica, quem procura salvar a vida e obter proteção acaba por encontrar caminhos alternativos. As fronteiras serviram também para favorecer o negócio dos traficantes e passadores, apesar de a retórica que constrói a hostilidade querer transmitir a ideia contrária. Perguntam-nos então, legitimamente, se devemos abrir as fronteiras. Esta questão levanta sempre medo e insegurança. Não há dúvidas que cabe ao Estado o dever de controlar as suas fronteiras, mas cabe também aos Estados o dever de respeitar e proteger os direitos humanos. É, por isso, essencial que exijamos que qualquer medida de regulação da circulação de pessoas seja compatível com os direitos humanos e seja sujeita a um controlo legal, judicial e político que seja efetivo. É fundamental situar a questão também em termos de justiça social internacional.

Além da construção efetiva ou simbólica destas fronteiras e do endurecimento das suas políticas de controlo, temos vindo a assistir, igualmente, à construção da ideia de hostilidade face aos refugiados, através de discursos públicos e de práticas que estigmatizam e que se autoalimentam. Não é necessário elencar exemplos, porque todos somos testemunhas do que tem sido feito e dito na Europa e que tem contribuído para a indignação face a estas pessoas.

Por outro lado, e felizmente, temos assistido também a uma resposta social que envia sinais positivos de acolhimento e de solidariedade que, em parte, podem contribuir para que algumas políticas sejam mudadas.

Talvez a crise das pessoas refugiadas atual e, obviamente, a gravidade e a urgência de ações que em si encerra nos possa levar a perceber que a mobilidade de pessoas, e não só causada pela guerra, venha a pautar o futuro do continente europeu. E que, com isso, virá uma inadiável urgência de replantar os princípios, valores e políticas que afetam esta realidade e sobre os quais a ideia europeia foi fundada.

É aqui que a tradição da hospitalidade surge e encontra o seu lugar. Aquele que pode parecer hoje um valor em desuso, renegado para segundo plano, tem mostrado serenamente que não está esquecido, através dos inúmeros gestos de pessoas e comunidades que abrem as portas de casa e os seus corações ao estrangeiro. Hospitalidade é alargar o conceito de “nós”. É o acolhimento do diferente de mim, é lembrarmo-nos que acolhemos porque fomos acolhidos pelos nossos pais, comunidade e sociedade. Perante o ideal de uma vida segura contra todos os riscos, a ideia de hospitalidade recorda-nos a nossa condição de dependentes e necessitados.

E esta é a primeira condição para a construção da hospitalidade: ligarmo-nos à nossa condição de seres vulneráveis e necessitados de cuidados sem nos esquecermos de que precisamos do outro, dos outros, para viver. Não só individualmente, mas enquanto uma nação ou sociedade. A segunda prende-se com o valor da hospitalidade enquanto expressão pública, através das leis e instituições. As práticas pessoais e comunitárias são o substrato para a construção da política pública. É urgente questionarmo-nos como se pode fazer a ponte entre estas iniciativas pessoais, comunitárias, locais e as responsabilidades públicas. Fazendo esta ponte, a hospitalidade pode dissolver fronteiras.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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