Advocacia Livre: Por Quem os Sinos Dobram (II)

O que o Decreto Lei n.º 149/2017, de 6/12 vem, de facto, prever, representa mais um ataque à advocacia e aos direitos fundamentais do cidadão.

Com algum espavento foi noticiada a publicação de um decreto lei que disciplinaria o recurso do Governo e seus ministérios aos serviços de sociedades de advogados.

Se com tal medida pretendia fazer-se crer ter-se introduzido ordem em situações que têm gerado polémica, uma breve leitura basta para que se verifique que o ténue sistema agora construído alterou as coisas para que tudo fique como está, como o futuro provará.

Mas se, neste particular, o que foi publicitado navega nas águas da inocuidade, o que o diploma em causa – Decreto Lei n.º 149/2017, de 6/12 – vem, de facto, prever, representa mais um ataque à advocacia e aos direitos fundamentais do cidadão, que aquela serve.

O diploma em causa cria um serviço central da administração pública denominado Centro de Competência Jurídicas do Estado, de nickname JurisAPP.

Este centro, sujeito ao poder de direcção do primeiro-ministro ou de membro do Governo em que o mesmo delegue tal competência, tem genericamente por missão prestar consultoria jurídica e assegurar a representação em Juízo do Conselho de Ministros, do primeiro-ministro e de qualquer outro membro do Governo organicamente integrado na Presidência do Conselho de Ministros ou que beneficie dos respectivos serviços partilhados. Em suma, este decreto lei atribui ao JurisAPP, através dos seus consultores, o direito a praticar actos que constituem o cerne da profissão de advogado, por isso qualificados como actos próprios dos advogados, por Lei da Assembleia da República.

De acordo com o diploma, o JurisAPP é servido por consultores que podem ser magistrados (!), doutores, mestres ou licenciados de reconhecido mérito, nas áreas da ciência jurídica, administração pública, políticas publicas, sociologia, economia, gestão, finanças, econometria, matemáticas aplicadas, estatística, engenharia de sistemas, informática e tecnologias de informação os quais formam equipas multidisciplinares constituídas em ordem à consulta jurídica e à representação em Juízo.

Subreptíciamente, fez-se entrar no sistema jurídico a multidisciplinaridade, a que a advocacia portuguesa sempre se opôs. A advocacia rege-se por regras e princípios seculares, de entre os quais avulta o sigilo profissional, necessariamente postos em causa quando o exercício de actos próprios dos advogados é amalgamado com o exercício de actos próprios de profissões de diferente perfil. Outros princípios, como o da lisura e da lealdade no desempenho do mandato, consagrados estatutariamente e garantidos pelos órgãos disciplinares da Ordem dos Advogados, estando impostos ao advogado, não o estão, porém, a estes consultores. O resultado é por demais evidente. Se o que é proibido ao advogado não o é ao consultor, não há igualdade entre as partes no litígio judicial e, assim, viola-se um princípio sagrado, essencial à própria Justiça – o da igualdade na sua procura, garantia da sua aplicação.

Mas este diploma também introduz - à revelia da Assembleia da República, a quem compete legislar sobre o Estatuto dos Magistrados Judiciais, salvo autorização ao Governo, no caso, inexistente - um principio de recrutamento de juízes para, sob um regime de comissão de serviço de dois anos renovável sem limite de tempo, servirem como advogados do Governo.

Trata-se de uma situação de gravidade acrescida já que, para além destes juízes serem discricionariamente nomeados e exonerados como consultores pelo Director do JurisAPP, perante quem respondem hierárquica e disciplinarmente – e este perante o primeiro-ministro – não se lhes reconhece sequer autonomia técnica, já que a independência está por definição afogada na sujeição hierárquica.

Em suma, o sistema permite a transmutação de juízes em advogados ao serviço do Governo e o seu posterior regresso à magistratura, quiçá para mais tarde retornarem a esta espécie de advocacia de Estado.

É verdadeiramente singular que, para além desta transmutação, a lei nem sequer estabeleça critérios de selecção dos juízes que virão a servir como advogados do Estado. A amplíssima discricionariedade legal no recrutamento de consultores, faz pressupor que nem sequer se pensou que o recrutamento de magistrados obriga ao decoro de não os sujeitar a negociações que não quadram com uma função que, pela sua elevação, deve ser preservada de qualquer suspeita.

Mas não só. Num país em que a cultura futebolística é inversamente proporcional à cultura cívica, é inconcebível que um árbitro possa tornar-se jogador de futebol e, depois, volte a arbitrar jogos em que intervenha a equipa que representara. Mas pelos vistos não se vêem obstáculos, nem constitucionais nem éticos, a que um juiz possa fazer uma comissão de serviço como advogado e, depois, voltar ao Tribunal para julgar quem antes representara!

Tudo isto espanta e entristece. Pela passividade com que uma vez mais se admite que os actos próprios dos advogados – que o são, não pelos advogados, mas porque penhor de garantia da defesa dos direitos dos cidadãos – sejam submetidos ao concurso com outras profissões, sem que uma voz de protesto se faça ouvir, um acto de oposição se faça sentir.

Espanta e entristece pela cumplicidade dos silêncios que permitem a subreptícia confusão de papéis que, sendo por natureza distintos, distintos devem permanecer, sob pena de, aos olhos do cidadão, a Justiça, por muito séria que seja, não o pareça.

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