2017 e mortalidade rodoviária: o ano da grande regressão

A política pública de prevenção rodoviária era uma política de sucesso. Este ano sofreu esta terrível regressão, perante a qual não podemos resignar-nos e com a qual não podemos pactuar.

1. Desde de que guardo memória, o país viveu sempre a tragédia da sinistralidade rodoviária, com os seus mortos, os seus feridos, os seus incapacitados, um penoso rasto de trauma e de dor. Todos tinham – todos têm – um familiar, um amigo próximo, alguém chegado, que, de um ou doutro modo, se tornou o rosto concreto e visível das estatísticas cinzentas e frias.

Os acidentes, as mortes, os feridos e as sequelas vitalícias fizeram sempre parte da vida portuguesa. Durante muito tempo, as campanhas nos meios de comunicação social, na publicidade ao longo da estrada ou nas acções em escolas estendiam-se pelo ano inteiro. A presença policial nas estradas ou até no tráfego citadino era especialmente visível. Não se cingia como agora às épocas ou datas críticas. Com esse esforço e a mudança de condições estruturais fundamentais, a verdade é que o país, ainda longe dos bons números, fez sérios progressos nas últimas décadas. Pode mesmo falar-se numa política pública durável e consistente que visa a diminuição da mortalidade rodoviária.

Nos anos mais recentes, a redução da mortalidade parece não ter sido acompanhada de uma ablação da cifra de sinistros e de feridos. Mas, seja como for, a tendência de decréscimo progressivo do número de mortos, ainda que oscilante, manteve-se. Em 2017, porém, deu-se uma inversão trágica e surpreendente. Só até Novembro, morreram nas rodovias portuguesas mais 53 pessoas do que no ano de 2016, um aumento exponencial, na casa dos 13 por cento, sem qualquer paralelo ou similar nos últimos 20 anos. De resto, e naturalmente, houve também um incremento do número de acidentes e de feridos. Tudo isto, note-se, sem contabilizar os mortos na estrada dos incêndios de Pedrógão Grande, que, por razões óbvias, não devem ser tidos em conta para este efeito.

 

2. Desde os finais do primeiro semestre que tenho vindo a alertar para esta enorme regressão no ano de 2017. No último mês, o Jornal de Notícias, o Correio da Manhã e agora, no fim-de-semana passado, o Expresso deram destaque e relevo ao tema. Ainda assim, e apesar de haver títulos na primeira página, não há meio de o flagelo entrar na agenda política ou até, de um modo mais transversal, na agenda mediática. Sempre que posso, tenho chamado a atenção para o problema, embora note que há uma enorme resistência em falar dele; por vezes, a intenção de o enxotar da preocupação pública é tal que parece haver uma vontade deliberada de o ignorar ou silenciar. Tempos houve em que a prevenção dos acidentes rodoviários era matéria prioritária para governos e para a opinião pública em geral. As campanhas eram massivas, o envolvimento dos responsáveis políticos era evidente, a presença mediática e física das polícias, seja a PSP, seja a GNR, era ostensiva. É natural que com a consecução de melhorias consistentes ao longo dos últimos vinte anos, o assunto não assumisse proporções prioritárias e só ocupasse o espaço público nas épocas de maior risco. Mas quando há uma tão funesta reversão de resultados, quando ela se concentra de um modo anómalo num único ano e prenuncia uma pesada inversão de tendência, não deveriam soar e ressoar todas as campainhas de alarme? Com um aumento tão substancial no número de mortos e de sinistrados em geral – que tantas vezes ficam com enormes incapacidades para vida –, não deveríamos estar a fazer um debate nacional e a mobilizar todos os meios para fazer de 2017 um mero ano de excepção e interrupção numa longa trajectória, apesar de tudo virtuosa?

 

3. Não faltará quem diga, baseado nas investidas daqueles três jornais, que o debate está aí, mesmo que não tenha chegado ao audiovisual nem às redes socais. Mas uma leitura atenta das peças jornalísticas mostra que, no tratamento do tema, procura sempre temperar-se a crueza dos números com uma etiologia de ordem tecnocrática. Não pode decerto dispensar-se uma análise da complexidade dos factores que podem ditar este enorme revés de uma política pública constante e consistente. Mas quando há uma subida e uma reversão desta grandeza, sem nenhuma ocorrência excepcional, afigura-se evidente que não se trata de mera conjunção de coincidências ou de simples convergência de agravamento das diversas variáveis.

É absolutamente incompreensível e inaceitável que um país que, nas últimas duas décadas, fez progressos notáveis na redução de vítimas mortais e até de feridos apresente, no ano que agora finda, esta brutal inversão de tendência. Se algo de parecido sucedesse com a mortalidade infantil ou com a política de drogas – ainda recentemente tão elogiada nos Estados Unidos e no Reino Unido pelos seus resultados –, que estaríamos a dizer e a ouvir no espaço público?

A política pública de prevenção rodoviária, que sempre concitou um largo consenso político, pilotada pela administração interna, coenvolvendo outros ramos da administração pública e inúmeros sectores da sociedade civil, era uma política de sucesso. Este ano sofreu esta terrível regressão, perante a qual não podemos resignar-nos e com a qual não podemos pactuar. O Estado falhou e volta a falhar no domínio da segurança das pessoas (e dos bens). E por mais explicações que se excogitem, fica a dúvida: não intercederá uma relação entre o desinvestimento do “Estado-Gerigonça” – sempre salarial e pouco social – nas estruturas de funcionamento de serviços essenciais e a emergência dessas falhas? A pergunta é excruciante, mas não pode deixar de ser feita.

 

4. Para a quadra natalícia, foi já anunciada uma possante operação policial de prevenção; oxalá possa minorar os danos de um ano tão aziago. Medida que obviamente se saúda e que pode prenunciar uma correcção de rota. Com os contornos descritos, uma causa desta envergadura pede mais, todavia. Neste patamar, já pede mesmo o empenhamento do Presidente da República. Que em 2018 abrace esta causa, como tão bem tem sabido abraçar outras. 

 

SIM. Adesão de Portugal à PESCO. Seria incompreensível estarmos fora do pilar europeu de defesa. Não havia necessidade de o Governo, por táctica, nos ter arrastado até ao último minuto.  

 

NÃO. Raríssimas. Na comunidade médica e hospitalar, sempre houve reservas à sua linha de intervenção. A falta de transparência e a proximidade ao poder instalado são bem mais preocupantes.

 

 

 

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