Uma exaltante ode marítima

O novo disco de Amélia Muge e Michales Loukovikas une múltiplas “ilhas”, pessoais e geográficas, literárias e musicais, reais e imaginárias, num exercício ímpar.

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ARCHiPELAGOS – Passagens, um dos grandes discos de 2017

Quando Amélia Muge e Michales Loukovikas, ela portuguesa e ele grego, uniram artes e esforços em PERIPLUS— Deambulações Luso-Gregas, a ambição musical e temática era unir culturas do Mediterrâneo às vizinhas do Atlântico e do Índico numa abordagem contemporânea. Conseguiram-no, e o disco ficou como um marco pioneiro: antes deles, nessa inusitada ponte luso-grega, ninguém fizera nada assim. Isso foi em 2012, quando falar da Grécia era ainda falar de crise e de uma Europa dividida pela austeridade. E foi por essa mesma altura que Hélia Correia, muito ligada à cultura helénica, publicou dois textos fortíssimos: o poema inédito Indignação (no PÚBLICO, em Janeiro) e o livro A Terceira Miséria (Relógio d’Água, Fevereiro). Ora foi a estes dois textos que Amélia e Michales foram buscar o núcleo central de ARCHiPELAGOS – Passagens, o seu novo disco, apresentado ao vivo no dia 29 de Novembro, no Teatro São Luiz, e aí lançado.

E se PERIPLUS estabelecia pontes (Portugal-Grécia, Ocidente-Oriente), alicerçando-se nelas, ARCHiPELAGOS estabelece-se como uma ode marítima onde múltiplas “ilhas”, pessoais e geográficas, literárias e musicais, reais e imaginárias, coexistem sem se anularem. E é neste apreciável equilíbrio que entramos n’O Arquipélago de Hölderlin, sabendo que “arquipélago”, em grego antigo, era o nome dado ao mar Egeu, só depois passando a designar as ilhas do Egeu ou qualquer conjunto de ilhas. E daí rumamos ao Eurípides da Tragédia de Orestes, ou à canção mais antiga que se conhece, o Hino Hurrita à deusa Nikkal (ca. 1400 a.C.), ligada fluentemente ao Acordai! de Lopes-Graça e José Gomes Ferreira (com incríveis semelhanças mas sem hipótese de plágio: aquela foi composta em 1946 e o Hino Hurrita só foi descoberto na Síria quatro anos depois).

Quem, perante tais referências, julgar que está diante de um exercício de diletantismo, engana-se. A teia urdida em ARCHiPELAGOS tem a fluidez das águas (e não serão os continentes também gigantescas ilhas num imenso mar dividido apenas por nomes?) e as referências literárias ou musicais, que são múltiplas mas estimulantes, agarrando o ouvinte à audição, completam-se numa sequência lógica. Também aqui há dez partes, como em PERIPLUS, e cada uma abre a “porta” à seguinte. Dos cantos de “embalar meninos, acordar adultos” (Hurrita e Acordai!) viaja-se até à Macaronésia (das Canárias a Cabo Verde), passando por amores e cansaços (Hélia, Safo, Pessoa), por feitiços do mar e idas sem regresso (o pescador grego que morre ou o rei imaginário de João de Deus que parte “no vapor Magnífico” e não volta), pela Utopia de More, pela Penélope de Ítaca, pelos Meninos Perdidos do Peter Pan. E eis que se chega à Terceira Miséria e à Indignação de Hélia (que diz parte do poema, no disco), já numa cadência sonora por onde espreita uma inquietação que não esmoreceu: “Temos aos ombros/ O apetrecho dos destruidores,/ […]: essa arrogância/ Pela qual o ocidente se perdeu.” E a marcha fúnebre da Eroica de Beethoven a sublinhar um final que não o é, pois a seguir vem Um início, ainda a poesia de Hélia, a exaltar a força das armas “que estão dentro do corpo: o pensamento,/ A ideia de polis, resgatada”. Mas esse reduto de uma possível resistência ainda tem outra sombra, a das migrações forçadas. E aqui surge A queixa do emigrante grego (de Vasilis Tsitsanis), a par com canções de emigração de Rosalía, Violeta Parra, ou até a cabo-verdiana Sodade, que Cesária imortalizou. Isto sem que nenhuma delas perca a sua identidade: dialogam e completam-se, temática e musicalmente.

O fecho com Saramago (Alegria) e de novo com o mar (Martin Codáx, numa melodia de rebético adaptada às medievais cantigas de amigo) deixa-nos um caminho em aberto: “Ondas do mar…/ Contas do mar…/ Contas nas ondas do mar…” E assim termina esta exaltante ode marítima (74 minutos, 28 faixas, 10 partes) onde se envolveram dezenas de músicos portugueses e gregos, com um trabalho inestimável de António José Martins e, depois, de Tó Pinheiro da Silva, no resultado final. O disco traz um CD extra com um libreto trilingue (português, grego e inglês) de 156 páginas, em pdf, com as letras das canções, biografias dos participantes, textos das instituições que apoiaram o trabalho e uma Arquipédia com um número considerável de entradas, iniciada por Michales e intensamente desenvolvida por Teresa Muge, que ali escreveu: “Os meus dias passaram a alimentar-se deste diamante musical que quanto mais se usa mais novo e polido fica.” Ouvi-lo e reouvi-lo confirma estas palavras. Um dos grandes discos de 2017.

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