O “défice da educação” e as Faculdades de Direito

Depois da paixão de Guterres, Costa verifica o défice na educação. Não está mal, ao fim de metade da legislatura e carecendo de temas e motivações aptos a gerar mais consensos junto dos parceiros parlamentares. E esta é uma matéria em que todos estão à partida de acordo, mesmo que no fim sobre uma mão cheia de nada.

As paixões são habitualmente efémeras; o défice, esse, é normalmente estrutural, pelo que a actual designação augura uma maior longevidade. Como também não somos ingénuos, é mais certo tratar-se de uma flor à lapela que de um empenhado e sincero investimento no futuro. Com pouca indústria e sendo o turismo o principal sector económico do país, com uma agricultura em regra de subsistência (honra se faça à vinha e a pouco mais), Portugal é – e tudo indica que continue a ser – um destino de serviços e do “very typical bacalao”.

Existe um amplo consenso no sentido de que precisamos de reactivar um ensino médio de qualidade, apto a fornecer ao mercado operários qualificados em áreas relacionadas com a construção civil, com a demais pouca indústria que nos vai sobrando e quadros intermédios que alimentem os serviços. As antigas escolas profissionais, obviamente que com os avanços pedagógicos e tecnológicos dos últimos tempos, são uma urgência nacional. Não precisamos de um país de licenciados no desemprego ou a trabalhar em caixas de supermercado, por muito honroso que tal seja, mas só significa que temos um trabalhador que ficou demasiado caro ao Estado, ao próprio ou aos seus pais para tal função. E acabe-se com esse preconceito terceiro-mundista de que todos os jovens têm de ser licenciados. Têm se sentirem vocação para tal e se perceberem racionalmente que aquilo para que sentem natural inclinação tem saída no mercado.

Aqui impõe-se o pragmatismo alemão ou de outros Estados que já o aplicam. Não pode o sector público, ao menos a longo prazo, manter artificialmente empregos, distorcendo aquilo de que o mercado precisa. Daí que se imponha um acto de coragem que não tem existido: cursos há em que a oferta é largamente superior à procura, gerando um conjunto de pessoas desalentadas por não trabalharem na área. A solução não está a jusante, através do garrote das ordens profissionais, p. ex., mas a montante, com a decisão política de, entre vagas públicas, particulares e concordatárias, não admitir mais que um dado contingente anual. Doa a quem doer e enfrentando os poderosos lóbis que existem no ensino superior. Mais ainda, as Universidades portuguesas têm pouca lógica de trabalho em rede e de partilha de recursos. É exemplo disso a aquisição de caríssimas obras para bibliotecas em Universidades pouco distantes e onde uma política integrada de aquisições permitiria comprar mais por menos. É essencial reforçar os já existentes programas de mestrado e doutoramento entre Universidades.

A forma como se gerem os recursos docentes no ensino superior público universitário, obedecendo ao respectivo estatuto, não permite uma adequação às diferentes áreas do saber. Se em tese concordo com a exigência do grau de doutor para leccionar, nas ditas ciências “duras”, tal é habitual antes dos 30 anos, o que, em Direito e em outras ciências sociais e humanas, é de todo uma maturação forçada. Concordo que o Direito é, amiúde, “o último moicano”, e que não raras vezes exige privilégios que não merece. Mas quem está no terreno conhece as enormes dificuldades por que hoje passam as Faculdades de Direito públicas. Um licenciado com alta média de curso é recrutado por grandes sociedades de advogados ou anseia ingressar na magistratura. Quem é o “matuto” que continua a estudar ao nível de mestrado para poder mendigar um lugar como assistente convidado, onde, dependendo da percentagem de contratação, pode nem ganhar o salário mínimo? E, depois de mais uns anos para se doutorar, com os actuais constrangimentos, como poderá ser contratado como professor auxiliar? Ou seja, arriscamo-nos a ficar nas Faculdades não com os melhores, mas com os possíveis. E são estes que vão formar gerações.

E os salários? Por certo serão um pouco mais que a média nacional. Mas só um pouco mesmo, para o grau de exigência da carreira, repleta de provas públicas, de júris e de avaliações internas e externas. Mesmo tendo em conta o nível do nosso salário mínimo, compare-se o que se paga aos professores do ensino superior público com os seus colegas estrangeiros e obter-se-á a reacção dos olhos esbugalhados que tenho quando lhes conto as contas por cá. E uma última nota para o baú do anedotário nacional: quem, como eu, leva 17 anos de ensino, estaria, pelo antigo Estatuto, a meio da carreira. Com o novo, voltou ao início, pela extinção das categorias de monitor, assistente-estagiário e assistente. E mais: doutoramento feito, o simpático Ministério oferece-nos um contrato sem termo, mas com período experimental de 5 anos. Sim, cinco. Nenhuma outra carreira o tem, que saiba. Ou seja, se as coisas derem para o torto, ao fim de um total de 21 anos de ensino ininterrupto, quem se encontra na mesma situação – e não somos poucos –, arrisca-se a que o Estado só perceba que, afinal, se é mau docente e investigador para lá de duas décadas volvidas. Sabemos que, em regra, o Estado é lento, mas tão lento a detectar a incompetência é tão risível que se torna cómico. Trágico-cómico.

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