Esta não é uma questão fracturante

Concordar com a prescrição da cannabis para fins medicinais não é uma questão de esquerda ou de direita.

O que hoje será discutido em audiência pública na Assembleia da República — uma proposta do BE para a utilização da cannabis para fins terapêuticos — é tudo menos uma questão fracturante.  Concordar com a prescrição da planta, cujos efeitos em determinadas doenças e tratamentos são indesmentíveis, não é uma questão de esquerda ou de direita. É somente uma questão de bom senso: a de definir um quadro jurídico que regule a sua compra em farmácias e que inclua a sua comparticipação, tal com acontece com outras substâncias e produtos, ou a possibilidade de auto cultivo, mediante autorização do Estado, para fins medicinais e de acordo com quantidades prescritas pelos médicos. De resto, por que carga de água é que o mesmo Estado que autoriza multinacionais a criarem plantações de cannabis no seu território se poderá continuar a opor a que aquela planta seja recomendada e utilizada medicinalmente em Portugal.

Há três factores importantes a reter nesta discussão. O BE concentrou-se no uso medicinal e não no uso recreativo da cannabis, o que teria o condão de empertigar parte do Parlamento; a Ordem dos Médicos não tem objecções a esta medida e reconhece que há evidência científica do seu uso em algumas doenças; e são vários os países da União Europeia que o fazem há mais de 15 anos. Quem ganharia com isso não seria um qualquer traficante; quem lucraria com isso seriam os doentes que passariam a aceder a um novo meio terapêutico.

Se Portugal se pode orgulhar de ter sido pioneiro em 2001, ao descriminalizar a posse e o consumo de drogas, a verdade é que esta e outras medidas ficaram enredadas num circulo vicioso de inação e de cobardia política. Foi o sucesso do modelo da descriminalização, reconhecido internacionalmente de forma consensual, que ditou a própria letargia em que o mesmo vive. Ou seja, “à custa dos louros do passado”, como diz Miguel Vasconcelos, coordenador do Centro das Taipas. Os especialistas queixam-se da degradação da resposta dos serviços públicos na área da toxicodependência, que resultou da sua integração nas administrações regionais de saúde nos anos da troika, cuja continuidade ou não está a ser objecto de discussão. O paradoxo é este: a tal política de combate às drogas que impressiona o mundo não parece impressionar suficientemente o Ministério da Saúde.

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