O federalismo como solução (ou ilusão) dos problemas da União Europeia?

Os apelos federalistas de Martin Schulz parecem demasiado desfasados da realidade para serem levados a sério. Mas, se por qualquer razão improvável, avançarem, a União Europeia não terá aprendido mesmo nada com o anterior desastre da Constituição Europeia.

1. As ambições federalistas da integração europeia estão presentes desde os seus primórdios, nos longínquos anos 1950. Em vários momentos da história europeia fizeram sentir a sua influência, com maior ou menor intensidade e resultados práticos. Na transição dos anos 1980 para os anos 1990, no período subsequente à queda do muro de Berlim, os ideais federalistas marcaram, de uma forma particularmente significativa, o rumo da integração. O Tratado de Maastricht, que instituiu a União Europeia e a criação do Euro, é um exemplo claro. Uma década depois assistiu-se a um novo impulso federalista. Joschka Fischer, Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão da Aliança 90/Os Verdes, num governo de coligação com o SPD de Gerhard Schröder afirmava, num discurso na Universidade Humboldt, em Berlim, a 12/5/2000, que o futuro passava por uma federação europeia.

2. Na época, o discurso de Joschka Fischer foi um dos impulsos para a Convenção Europeia que se reuniu entre 2002/2003, com o objectivo de elaborar uma “Constituição para a Europa”, ou, mais rigorosamente, um Tratado Constitucional Europeu. Este foi rejeitado nos referendos da França e da Holanda em 2005, o que levou à impossibilidade da sua entrada em vigor. Mas a história não acabou aí. O Tratado de Lisboa, na prática uma recuperação da Constituição Europeia com outro nome, foi a seguir efectuado e posto a vigorar. Aspecto importante: todos os dirigentes políticos nacionais se terão comprometido, em privado, a não efectuar referendos (à excepção da Irlanda que, devido à sua constituição, teria sempre de o efectuar). A forma como surgiu o Tratado de Lisboa mostra uma estratégia de integration by stealth (integração furtiva ou às escondidas), usada para contornar a resistência popular à ambição federalista ou de aumento da integração europeia.

3. Recentemente, Martin Schulz, o ex-Presidente do Parlamento Europeu e líder dos social-democratas (SPD) alemães, voltou a apontar o federalismo como solução para os males da União Europeia. O contexto foi o de uma reunião do SPD, ocorrida a 7/12/2017, sobre a abertura de negociações com a CDU de Angela Merkel, para a possível formação de um governo de coligação. Martin Schulz aproveitou para fazer um empolgado discurso federalista, afirmando que os Estados-Membros da União Europeia deveriam assumir um compromisso com os "Estados Unidos da Europa”. Para isso, deveriam também concordar em efectuar um novo tratado constitucional, que estabeleceria uma união federal. O novo tratado constitucional resultaria de uma convenção que incluiria representantes da sociedade civil e dos cidadãos em geral. Seria submetido à ratificação dos Estados-membros da União Europeia, sob pena, para os que o rejeitassem, de uma saída automática da União. (Ver "Martin Schulz calls for 'United States of Europe’" in Financial Times, 7/12/2017).

4. Que pensar de tudo isto? O federalismo é a solução para os problemas da União Europeia como têm defendido Joschka Fischer, Martin Schulz e muitos políticos e intelectuais europeus? Mas, será possível, face à enorme heterogeneidade das unidades políticas que compõem a União, evoluir para uma qualquer forma de federalismo baseado numa lógica essencialmente paritária e solidária? Os exemplos mais conhecidos de federalismo clássico, os casos dos Estados Unidos da América (EUA), em 1787, ou o da Suíça, em 1848, lançam fundado cepticismo sobre praticabilidade desta solução na União Europeia do século XXI. Nos EUA, o momento federador ocorreu num curto período de onze anos após a independência de 1776. Entre outras circunstâncias específicas da época, as ex-colónias britânicas tinham uma população conjunta escassa, inferior a três milhões de habitantes e com relativamente pequenas diferenças entre si. Não existia qualquer tradição enraizada de Estado-Nação soberano em nenhuma delas. Também no caso da Suíça, quando ocorreu evolução para uma federação, em 1848, após o longo período histórico onde subsistiu a medieval confederação helvética, a dimensão populacional era reduzida e semelhante à dos EUA em 1787.

5. Teoricamente, o federalismo pode ser uma solução para os muitos problemas económicos e políticos de que sofre a actual União Europeia. Permitiria, por exemplo, aumentar o grau de coesão europeia, projectar o seu peso político conjunto no exterior, ombrear com grandes potências globais, como os EUA e China, afirmando-se como um actor político internacional de primeira grandeza. Permitiria, também, em termos de segurança e defesa, obter ganhos resultantes de uma força militar mais integrada, pela cooperação e partilha de estruturas de investigação das indústrias de defesa e redução de custos devido a compras conjuntas de material militar. Facilitaria, ainda, a actuação em operações multinacionais pelo uso de equipamentos similares que aumentam a eficácia da actuação. Também a nível económico e fiscal se poderiam, por exemplo, apontar ganhos resultantes de um orçamento europeu de maior dimensão (o actual representa apenas 1% do PIB da União) e da existência de impostos europeus a financiá-lo. Facilitaria, por exemplo, a gestão de crises económicas e financeiras na Zona Euro e na União. Poderia até apontar-se a possibilidade de se criar um genuíno Estado social a nível geral europeu.

6. Mas os modelos não são bons apenas porque em abstracto apresentam vantagens, ou são casos de sucesso em certas experiências políticas de países vistos como “avançados”. É um vício comum achar-se que é assim. Leva, frequentemente, a opções e a decisões políticas erradas. É esse o grande problema do federalismo quando aplicado à actual União Europeia. Pelas razões apontadas, nomeadamente a grande disparidade política, económica e demográfica existente entre os Estados que a hoje compõem — nos extremos entre a Alemanha e Malta —, não é fácil acreditar que poderia ter sucesso. Talvez no passado, com menos Estados e numa União mais homogénea tivesse sido possível. No contexto actual, não se vê bem como os grandes Estados aceitarão comprimir o seu poder político e partilhar mais recursos económicos, sem terem um papel determinante na União. Mas esse seria o caminho de um federalismo dominado por potências directoras, seja qual for a sua aparência formal e ideais subjacentes.

7. Para além da ambição federalista expressa por Martin Schulz, estão a ocorrer avanços no âmbito da Cooperação Estruturada Permanente (Permanent Structured Cooperation, PESCO), para a formação do chamado, ainda que sem rigor, “exército europeu”. A iniciativa enquadra-se no âmbito do artigo 46º do Tratado da União Europeia e está aberta a qualquer Estado-Membro que queira nela participar. No nº 5 desse mesmo artigo estabelece-se que se “um Estado-Membro participante desejar abandonar a cooperação estruturada permanente, notificará a sua decisão ao Conselho, tomando este nota de que terminou a participação do Estado-Membro em causa”. Quer dizer, estamos, pelo menos na formulação actual, perante uma cooperação de tipo voluntário, entre Estados soberanos, onde a regra é a decisão por unanimidade. Não se trata de uma transferência de competências soberanas para instituições europeias, como existe, por exemplo, na política monetária, no caso do Euro. Existe ainda a possibilidade explícita de saída, caso haja mudança de entendimento do Estado-Membro

8. Mas isto não esgota a discussão sobre a PESCO. A questão não é apenas dos méritos ou deméritos de uma segurança e defesa europeia. A sua necessidade é real no actual contexto internacional e de relações políticas turbulentas com os EUA, sob a presidência de Donald Trump. A questão é a dos processos (e objectivos últimos, ainda que não explicitados) subjacentes a esta iniciativa europeia, pois os processos usados, e a transparência destes, são fundamentais em democracia. Se o intuito não declarado for criar um processo, supostamente técnico, para que, mais à frente, se possa apresentar a federalização da defesa como "inevitável" e sem outra alternativa, algo está errado. Estaremos, mais uma vez, perante uma evasão dos mecanismos de escolha e legitimidade democrática em áreas da soberania fundamental do Estado. E não se pode dizer que este receio seja propriamente injustificado na PESCO. A “integração furtiva” tem sido demasiadas vezes usada para contornar a vontade dos cidadãos na integração europeia.

9. Por último, constata-se que o federalismo é comummente apresentado, por políticos e intelectuais, como uma panaceia quase miraculosa. A União Europeia está com problemas económicos e políticos? Federalize-se a União! A Espanha está com problemas devido à ambição independentista da Catalunha? Federalize-se a Espanha! Na realidade, como já explicámos, trata-se, apenas, um modelo político que, em determinadas circunstâncias históricas, pode converter-se num sucesso (formação dos EUA e da Suíça). Mas pode, também, noutros casos e circunstâncias históricas diferentes, transformar-se num grande fracasso (desagregação da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia). E não é apenas uma questão de alguns federalismos serem democráticos e outros não. O fascínio simplista pelo federalismo, esquecendo as profundas especificidades europeias ligadas ao Estado-Nação e à forma como o modelo federalista surgiu e ganhou raízes em certos Estados e noutros não, pode tornar-se num ideal desastroso. Quanto aos apelos federalistas de Martin Schulz, parecem demasiado desfasados da realidade para serem levados a sério. Mas, se por qualquer razão improvável, avançarem, a União Europeia não terá aprendido mesmo nada com o anterior desastre da Constituição Europeia e as profundas fracturas da crise da Zona Euro e dos refugiados.

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