Vinte e cinco anos e 99 destinos: “a lista possível” de Gonçalo Cadilhe

O jornalista de viagens, nascido em 1968 na Figueira da Foz, saltou da gestão de empresas para a descoberta do mundo, numa viagem iniciada em 1992 e ainda sem final anunciado. Agora, no livro O Esplendor do Mundo, reúne os locais e as experiências que o marcaram “para sempre”.

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Adriano Miranda

No espaço de 25 anos, foi jornalista, escritor e documentarista. Continua a sê-lo e, seguramente, prosseguirá com as carreiras múltiplas à boleia daquele que é o seu maior trabalho – o de viajante profissional. Depois de quinze livros lançados e de viajar por (quase) todo o globo, Gonçalo Cadilhe reúne 99 destinos em O Esplendor do Mundo, lançado em Novembro pela editora Clube do Autor. Se há viagens registadas que pretendem inspirar o leitor a fazer as malas, também as há irrepetíveis e resultantes de experiências do escritor, das quais “o leitor fará bem em manter-se à distância”, aconselha na contracapa.

Já perdeu a conta às viagens que fez?
Acho que não é o “perder a conta”; é não conseguir terminar uma viagem e começar outra. Diria que, até hoje, fiz apenas uma viagem – a da vida. Estou a ser um pouco poético, mas quando estou em viagem e a trabalhar naquele projecto, ao mesmo tempo estou a preparar o próximo. Quando chego a Portugal, tenho reuniões, avanço com outro projecto e termino o anterior. Há uma espécie de continuidade e as viagens sobrepõem-se.

Não é, portanto, o viajante normal.
Não, não sou o típico viajante que faz uma viagem, regressa, pousa a mala e fica uns meses à espera da próxima. Não é bem isso. Como este é um trabalho profissional, estou sempre embrenhado em projectos. São 25 anos a viajar de forma profissional e a tentar, durante esses anos, criar compartimentos estanques para essas viagens.

E como é que decidiu, há 25 anos, iniciar essa grande viagem?
Seria presunçoso da minha parte dizer que foi uma decisão minha. Na verdade, foi uma decisão do destino. Claro que qualquer um de nós, que alenta o sonho, o desejo de viajar, gostaria de ser pago para isso. No meu caso, foi algo que o destino me propôs, um conjunto de circunstâncias: ter nascido na época em que nasci, ter chegado ao mercado de trabalho na altura em que cheguei. Nessa altura, nos anos 1990, o país ganhava alguma solidez financeira e a classe média começava a ter interesse por viagens de turismo. O crescente interesse por esta actividade permitiu-me ser aquilo que sou hoje. Quando terminei a licenciatura em Gestão de Empresas, que não tem nada a ver com viajar profissionalmente, percebi que tinha uma porta aberta se me atirasse com a convicção de viajar, regressar a Portugal e tentar, batendo de porta em porta, vender a reportagem do percurso que tinha feito.

Onde existia essa oportunidade?
Na altura, surgiram as primeiras revistas de viagens. Mais importante ainda, os semanários e os jornais diários começaram a dedicar espaço a essa secção, a das viagens. Portanto, o início dos anos 1990 pareceu-me ideal para arrancar com este modo de vida. Passados todos estes anos, apercebo-me de que foi uma espécie de bola de neve, sempre em crescimento.   

Em que momento é que se deu o arranque das viagens “profissionais”?
Já durante o final dos anos 1980 viajava regularmente, com o pouco dinheiro que tinha. Percebi, então, que podia tentar fazer disso profissão. A primeira reportagem que consegui publicar e vender a uma revista resultou de uma viagem à América Central, durante o Verão de 1991. No regresso, penso que em Setembro ou Outubro desse ano, bati à porta de uma revista que já não existe hoje, a Grande Reportagem. O trabalho foi publicado em Fevereiro de 1992, e assim comecei a vida de viajante profissional.

E também a de jornalista.
ExaCtamente. Mais tarde viria a dar, também, o escritor e documentarista que sou hoje. Foi o início de uma ramificação, que se tem multiplicado em vários caminhos.

O seu primeiro livro surge uma década depois desse início, com Planisfério Pessoal, publicado em Maio de 2005. Como?
Dez anos depois da primeira reportagem, estava a trabalhar regularmente para o Expresso e surgiu a possibilidade de fazer uma volta ao mundo em tempo real. À medida que ia fazendo a viagem, ia enviando, por email, texto e fotografias que eram publicados na semana seguinte – isto, em 2002, era considerado em tempo real. Para a época, foi um projecto revolucionário. Essa viagem tinha uma componente muito interessante, que era o pacto com os leitores de não apanhar aviões. Demorou 19 meses, ou seja, 86 semanas. Durante esse tempo, estive presente nas páginas do Expresso, e as pessoas iam acompanhando com grande interesse. Isso deu-me uma notoriedade enorme no país e junto de quem lê o jornal. Quando regressei, tinha o convite de tornar as crónicas semanais nesse livro.

Doze anos depois, em O Esplendor Do Mundo, decide reunir, num único livro, 99 destinos que foi coleccionando ao longo destes 25 anos. 
Bom, será que eu coleccionei os destinos? Ou os destinos é que me coleccionaram a mim? Na verdade, os destinos são muito mais, são infinitos, são quase incontáveis. O que eu tive de fazer não foi chegar a 99 destinos, mas sim deitar fora os outros todos, até reduzir a lista a 99.

Porquê 99?
Os números dez, 100 ou 1000 dão a ideia de um ponto de chegada, de uma quantidade completa. O 99 é a minha maneira de dizer que esta lista não está completa. É uma lista que reflecte o meu percurso de vida até hoje – daqui a 10 anos, a lista seria completamente diferente. E talvez daqui a dez anos saia um segundo volume. Esta lista é o topo da pirâmide das inúmeras experiências, destinos, lugares e itinerários que fui vivenciando ao longo destes anos todos. É a lista possível.

Essa lista contempla que tipo de destinos? Destinos que não vêm nos mapas turísticos ou atracções bem conhecidas?
Com este projecto, não quis inventar a roda nem descobrir coisas que estão por descobrir. A colecção que eu fiz para o livro teve o cuidado de dosear lugares incontornáveis, porque seria presunção da minha parte ignorá-los, porque todos nós sonhamos visitá-los uma vez na vida. Estou a pensar na perfeição da arquitectura do Taj Mahal [Índia] ou nesse momento extraordinário da natureza que é o Grand Canyon [Estados Unidos]. Esses lugares não podem faltar na minha lista, porque quando lá estive fiquei completamente abismado. Parte da lista é feita de lugares que me marcaram, e que marcaram todos aqueles que, como eu, sentiram o fascínio, a imensidão e a humildade de estar perante esses destinos.

Por outro, tem lugares que não são convencionais, fruto do meu percurso de vida. Por exemplo, a travessia do Oceano Pacífico num cargueiro, à boleia, tem a ver com uma série de coincidências e imposições que eu coloquei na viagem da volta ao mundo sem aviões. Claro que uma pessoa que compre um livro à procura de sugestões para as suas próximas férias não vai dizer “Aqui está uma boa sugestão”. Resumindo, a lista doseia lugares convencionais, ao alcance de qualquer um, e experiências de viagens, itinerários e momentos que me aconteceram e dificilmente estarão disponíveis para o leitor.

Durante estes 25 anos, e incluindo todos os locais que visitou, em algum momento considerou desistir de determinada viagem?
Há uma mão-cheia de momentos difíceis que, na perspectiva do leitor, acabam por ser os momentos mais importantes e interessantes da viagem, ou das viagens. Houve roubos, situações de perigo ou de burocracia que atravessei e que fui contando, mas que não chamei para esta lista. O livro não tem como ideia apresentar dificuldades e epopeias de viajante, mas sim destinos e momentos luminosos. Evitei colocar experiências complicadas e sem final feliz. Mesmo assim, algumas estão no livro, como a minha viagem ao Afeganistão. A situação que encontrei nesse país, após a invasão norte-americana, era de guerra, ao contrário do que estava a ser noticiado pelos media ocidentais. Eu não sabia que a situação não estava pacificada. Não é um lugar para propor ao leitor, mas coloquei-o na lista porque, apesar de tudo, é um país extraordinário, de uma riqueza cultural e muito presente na História da humanidade como poucos.

Por outro lado, há algum destino favorito?
Não há um destino favorito. Há tantos destinos favoritos e seria ingrato escolher um entre os outros 20 ou 30. Se formos pela vertente cultural, um destino não é comparável a outro que será escolhido pela vertente paisagística. Da mesma forma que, pela experiência da alimentação, uma viagem não tem nada que ver com outra que permita fazer surf ou trekking. A pergunta não é ingrata, mas antes incompleta, porque não me permite responder de consciência tranquila.

No caso de Portugal, há algum lugar por descobrir?
É escusado estar à procura de grandes segredos em Portugal. Numa perspectiva global, é mesmo muito pequenino. Eu diria que quem tem o interesse ou o foco apontado para o planeta, não escolhe mais do que três ou quatro destinos no nosso país e, mesmo assim, não sei se seriam prioritários. É óbvio que o Vale do Douro, os Açores, a cidade de Lisboa ou o Alentejo podem figurar, com dignidade, numa lista que escolha os melhores lugares do planeta, mas não entre os primeiros dez lugares.

Vê-se a fazer isto para o resto da vida?
Depende de quando for o final da vida [risos]. Se for amanhã, diria que sim. Se for daqui a 40 anos, não. Seria um desconforto incrível para um nonagenário andar a fazer, de mochila às costas, o caminho do Fish River Canyon [na Namíbia]. Mas, e de uma maneira mais óbvia, seria um pouco absurdo e contraproducente afastar-me deste percurso e ir agora trabalhar para uma banca ou ir vender selos para o posto dos Correios. Parece-me que faz todo o sentido alimentar esta fogueira com mais lenha enquanto escritor de viagens e viajante profissional, sendo das pessoas em Portugal com o percurso mais coerente e consistente na escrita de viagens. 

Texto editado por Sandra Silva Costa    

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