Tribunal duvida que mulher autónoma possa ser vítima

Acórdão do Tribunal Judicial de Viseu deu entrada no Tribunal da Relação de Coimbra. O colectivo presidido pelo juiz Carlos de Oliveira é acusado de deturpar prova com base em preconceitos

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Um acórdão do Tribunal Judicial de Viseu, datado de 3 de Outubro, dita que não é crível que uma mulher moderna e autónoma se sujeite a uma relação violenta. O recurso, que deu entrada no Tribunal da Relação de Coimbra, acusa o juiz de falta de isenção.

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Um acórdão do Tribunal Judicial de Viseu, datado de 3 de Outubro, dita que não é crível que uma mulher moderna e autónoma se sujeite a uma relação violenta. O recurso, que deu entrada no Tribunal da Relação de Coimbra, acusa o juiz de falta de isenção.

Facto: Ângelo e Susana casaram-se no dia 24 de Agosto de 2002. Facto: nos primeiros dez anos, viveram na casa dos pais dela, emigrantes na Alemanha, em Castro Daire. Facto: em 2012, mudaram-se para uma casa que construíram com recurso a um empréstimo bancário. Facto: no dia 7 de Julho de 2014, Susana saiu de casa e apresentou queixa por violência doméstica. Facto: a GNR foi a casa e apreendeu uma espingarda de caça e uma arma de ar comprimido, que pertenciam a Ângelo. Facto: durante meses, Ângelo mandou mensagens, telefonou, de forma insistente, para o telemóvel, para casa e para o trabalho de Susana e procurou-a em diversos locais. Facto: foi accionado o Sistema Nacional Vigilância Electrónica, que assegura a execução de mais de 500 decisões judiciais de proibição de contactos por violência doméstica.

A partir daqui, como é comum em casos desta natureza, as versões opõem-se. Susana jurou que era obrigada a dormir com a caçadeira debaixo do colchão, que o ex-marido a insultava, que em várias ocasiões a pontapeou, agarrou, empurrou, puxou pelo cabelo, chegou a apontar-lhe a caçadeira e a ameaçar matá-la e matar a família dela. E Ângelo negou tais acusações. Afiançou que “discutiam e gritavam um com o outro, agarravam-se e empurravam-se mutuamente”.

O tribunal deu como certa a versão do arguido, fundamentando-se no seu depoimento e no de duas testemunhas. Uma contou que Ângelo admitiu que dava pontapés em Susana, mas “de raspão”, e que a esmurrava, mas não era “a sério”, e que ela também lhe dava beliscões. E a outra contou que Ângelo admitiu que lhe batia, mas que “não era do nada”. “Eram só uns empurrões e umas agarradelas, na sequência de agressões”, declarou, sem mais detalhe.

O colectivo recusou a versão de Susana, da mãe e a das testemunhas que elas apresentaram. Nem sequer pediu a gravação que o irmão dela afirma ter de um telefonema que Ângelo terá feito no dia da fuga de Susana a prometer que nunca mais lhe bateria. E elas recorreram da decisão, que absolve o arguido de dois crimes de violência doméstica, um crime de perturbação da vida privada, um crime de injúrias e o condena por um crime de detenção de arma proibida.

O recurso aponta erros na recolha de prova e acusa o colectivo presidido pelo juiz Carlos de Oliveira de deturpar prova com base em preconceitos. Não foi possível ainda ouvir o magistrado, que foi objecto de uma queixa ao Conselho Superior da Magistratura, entretanto arquivada. Contactado pelo PÚBLICO, lembrou que está sujeito ao dever de reserva e informou que iria questionar o Conselho sobre o melhor modo de proceder.

“É arrepiante”, reage Sofia Neves, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género da Universidade de Lisboa, docente do Instituto Universitário da Maia, presidente da Associação Plano I, ao ler a sentença. “O texto está carregado de estereótipos, de preconceitos”, justifica. Elisabete Brasil, jurista, directora-executiva para a violência doméstica na organização de mulheres UMAR, não se surpreende. “É mais do mesmo. É a incapacidade de identificar os sinais, as dinâmicas da violência doméstica, as estratégias de manipulação, controlo, poder.”

Que vítima?

Susana não encaixa na ideia que o tribunal tem do que é uma vítima de violência doméstica. Viveu até aos 21 anos na Alemanha. Trabalhara 11 anos como fisioterapeuta. Depois de partir o sacro, o osso triangular localizado entre a última vértebra lombar e o cóccix, passou a trabalhar como administrativa.  

“Denotou em audiência de julgamento ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido”, lê-se no acórdão. “O seu carácter forte e independente foi mesmo confirmado por várias testemunhas [...]. Por isso cremos que dificilmente a assistente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando.”

Tal como Sofia Neves, Isabel Ventura, investigadora da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, docente da Universidade Católica, perita nacional no Observatório da Violência Contra as Mulheres da European Women’s Lobby, vê naquelas palavras a ideia de vítima “submissa, dependente”. Ora, “a violência doméstica é um fenómeno transversal, que afecta pessoas de todas as idades, com os mais variados níveis de escolaridade, de todos os estratos socioeconómicos”.Não fosse assim, como entender casos como o da apresentadora de televisão Bárbara Guimarães?, questiona. Falta um entendimento do que é vitimação,  uma noção de que a violência limita a liberdade de acção das vítimas, torna Elisabete Brasil. 

Que forma de violência?

Durante o julgamento, o juiz insistiu muito na necessidade da prova de dano físico. “O que temos aqui são episódios em que a senhora aparece com dificuldades respiratórias, com crise hipertensiva, palpitações”, criticou. “Qualquer coisa a ver com o sono, depois tem realmente a questão do aborto que fez, tem depois problemas psiquiátricos também aqui com receitas desse teor, mas não temos um único elemento clínico no processo em que se a senhora se dirigiu por ter uma lesão física.”

“O tribunal ignora a sintomatologia psicopatológica, que é muito saliente”, analisa Sofia Neves. Os episódios de urgência hospitalar de agitações nervosas, faltas de ar, dores, taquicardias, falta de sono, depressão, de que Susana apresenta prova, são comuns em vítimas de violência doméstica (que pode ser física, psicológica, sexual ou financeira).

“Era importante perceber se esta sintomatologia corresponde ou não a um quadro de violência prévio”, diz Elisabete Brasil. Só que o MP não pediu perícia psicológica. E o colectivo não valorizou o depoimento do técnico da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

As provas de mazelas físicas que havia foram descartadas por falta de referência específica a agressões. Por exemplo, há um relatório médico sobre o sacro partido. Susana afirmou que foi empurrada pelo ex-marido e que disse ao médico que tinha caído. “Se alguém me empurrasse pelas escadas abaixo e eu me lesionasse no sacro, eu faria certamente queixa contra quem fosse”, comentou o juiz.

O magistrado também não acreditou que o aborto que provou ter sofrido tenha sido provocado por uma agressão. Primeiro, disse que ela não falou nisso quando fez a participação, o que não era correcto. Depois, desvalorizou: “Mas não disse que foi provocado dessa forma”. O acórdão, aliás, refere que a gravidez foi desejada, embora Susana tenha dito que foi um acidente.

Que dinâmica de violência?

Não é só o perfil. O colectivo julga que diversos aspectos da vida comum lançam dúvidas sobre a versão dela. “Após quatro anos de (pretensos) abusos, receios, agressões, privações da liberdade, ameaças, perpetrados continuamente pelo arguido, é crível que a dita assistente aceitasse construir uma casa com recurso a crédito bancário?”, questiona o documento. “Ainda mais uma casa isolada (como o arguido e assistente referiram), em que seria mais difícil a assistente obter auxílio? E após cinco anos desses actos de contínua violência doméstica, é crível que a assistente aceitasse engravidar?”

As transcrições do julgamento revelam outras crenças. Quando Susana prestou depoimento, no dia 20 de Dezembro de 2016, o juiz chegou a comentar: “A senhora não tinha filhos, portanto, a primeira coisa que podia fazer era sair de casa.”

“Eu tinha vergonha”, disse ela. “Eu, quando ia ao médico, eu inventava para não dizer que era o meu marido. Eu queria salvar o meu casamento. Ele, quando me aleijava, eu andava com lenços, com roupas compridas. Aliás, ele chegava-me a dizer que ele batia porque eu é que o provocava.”

O tribunal não se fiou. “Confrontada com o facto de ser uma mulher autónoma e com salário proveniente do seu trabalho, não dependente do arguido, e mesmo assim ter-se — alegadamente — submetido a tantos episódios de violência doméstica durante seis anos, a assistente afirmou que tinha esperança que o arguido se mudasse”, lê-se no acórdão. “Confrontada com a ausência de qualquer queixa ou denúncia por violência doméstica praticada pelo arguido antes de ter saído de casa, declarou que tinha receio dele, e sentia vergonha.”

O acórdão — sustenta Leonor Valente Monteiro, ex-membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, especializada em Igualdade de Género e Violência Doméstica, coordenadora da Associação Projecto Criar — “denota grande ignorância” sobre as dinâmicas próprias da violência doméstica. Muitas vítimas, lembra, ficam presas no chamado ciclo de violência, que tem uma fase de tensão crescente, uma fase de explosão/agressão, uma fase de calma/lua-de-mel, esta última caracterizada por pedidos de desculpa, atitudes carinhosas, promessas de mudança.

O amor, a esperança de que o agressor volte a ser o que era, mas também a vergonha, o medo de represálias, o receio que ninguém acredite fazem com que inúmeras vítimas se mantenham nas relações violentas, achega Isabel Ventura. O silêncio faz parte deste tipo de crise que tende a ocorrer fora de olhares alheios, entre quatro paredes. Não é raro haver hesitações, recuos, mesmo depois de apresentada a denúncia, enfatiza Elisabete Brasil. E Ângelo seria bem intenso, a avaliar pelas mensagens que constam do processo, nota Sofia Neves.

Que estratégias?

Há dezenas de mensagens escritas por Ângelo a pedir desculpa ou perdão. O tribunal não as interpretou como um indício. Nem entendeu as insistentes mensagens, telefonemas, presenças inesperadas como um problema. São centenas de tentativas de chegar à ex. “As declarações do arguido na parte em que refere que pretendia apenas reconciliar-se com a sua esposa merecem credibilidade”, dita a sentença.

Para esvaziar a ideia e perseguição, o colectivo lembra que Susana também enviou mensagens a Ângelo. Só que, segundo explicou no julgamento, contactou-o em ocasiões muito específicas. Para lhe pedir que a deixasse em paz, para ir buscar os seus pertences, para conversar sobre o empréstimo ao banco.

“O tribunal valoriza o esforço que ele faz para recuperar o casamento”, interpreta Isabel Ventura. O reverso disso é desconsiderar que esta insistência é típica do comportamento de um agressor que não se conforma com o fim de uma relação e, por si só, pode ser uma forma de violência. “Este indivíduo tem armas em casa”, recorda Sofia Neves. “No contexto de violência doméstica, ter acesso a armas de fogo é um factor de risco elevado. Esse aspecto é desvalorizado”.” O arguido emerge como uma “pessoa trabalhadora”, “respeitada pelos amigos”.

“Este homem sai deste julgamento ‘empoderado’”, corrobora Elisabete Brasil. “A mulher, pelo contrário, chega ao fim desgastada, humilhada. O que se avalia não é se o crime ocorreu ou não, não é que estratégias são usadas para controlar e exercer poder sobre a vítima. O processo está muito centrado na responsabilidade da vítima”, aponta. “Ela é que não fotografou as lesões, ela é que não contou, ela é que não saiu de casa logo, ela é que não mudou de número de telefone.”

Não há considerações directas sobre adultério, como no polémico acórdão da Relação do Porto. Parece, porém, que essa ideia pairou no julgamento, nota Isabel Ventura. “Tem algum namorado?”, perguntou o juiz. E logo: “E alguma vez teve alguma relação com um seu colega de trabalho?” “Há todo um discurso de culpabilização da vítima”, conclui Sofia Neves. “Isto é muito preocupante”, suspira. “Quantos outros acórdãos destes existirão e não virão a público?”