Beatriz na curva da estrada

“Amei-a 48 anos, à minha Beatriz”, diz o velho antes de virar costas e avançar pela estrada que atravessa como se lhe pertencesse a ele e não aos automóveis

“Olhei para ela, ela viu-me com os seus olhos, e já não havia nada a fazer. Amava-a desde a ponta dos pés ao último fio de cabelo.” Ela, “a minha Beatriz”, explicou o velho cigano vestido de preto, chapéu preto igualmente na cabeça e barba grisalha caindo sobre a camisa aberta dois botões. Falava de peito oferecido ao calor na beira da estrada. De peito oferecido na curva onde se mantinha impassível, ignorando a passagem dos carros.

Muito viveu aquele homem. “Dez anos em Angola, as ilhas açorianas todas” e mais um sem fim de lugares que foi revelando um por um. Muita coisa, muita vida a mudar, a recomeçar, a mudar outra vez. Na verdade, meros pormenores a decorar a história principal. Não interessavam assim tanto as passagens pelo Brasil e as viagens pela Europa. Quando aquela vida for pesada na balança, que importância terá isso ou o paquete – “era o Pátria”, recorda – em que embarcou para o Ultramar?

Quando aquela vida for pesada, falará da Beatriz, a dele. Falará do olhar dela nos olhos dele no baile algures na serrania. Ele, 27 anos, prometido pelo pai a uma prima. Ela, 17, prometida pela família a um senhor doutor engenheiro de Beja.

Dançavam quando ele lhe perguntou, “Tu gostas de mim?”. E ela a acenar que sim. “Tu amas-me?”. E ela a continuar a dizer que sim, mas agora com a boca e com os olhos. “Digam-me se existe amor assim fora dos livros?”, pergunta agora, tanto tempo passado desde a noite do baile, 1963 era o ano.

Ele mandou-a dizer à tia, para que esta avisasse a família, a dele e a dela, que tudo, a prima e o senhor engenheiro, ficaria sem efeito. Fugiriam por amor. “Por amor”, repete o velho magro e alto, imponente, sorriso melancólico desenhado nos lábios.

– Madeira? Onde é?
– Fica a um dia de distância no mar.
– É bonita?
– Sim, vais ver como é bonita.

À noite, pegaria no carro, um Peugeot cuja matrícula ainda recorda mas que não apontei, e, à hora combinada, os faróis dariam o sinal. Passariam de médios a máximos. Ela entraria no carro e partiriam.

Partiram e chegaram a Lisboa. O carro foi escondido numa garagem, antes de procurarem uma pensão à beira-rio onde aguardar a manhã seguinte. “Foi ali que consumámos o nosso amor”, conta antes de descrever como o navio partiu do Cais da Rocha Conde de Óbidos, como avançou no Tejo e depois no Atlântico até chegar ao Funchal. Terá ela achado a Madeira bonita? Isso ele não chega a contar, mas, enquanto contava o resto, eu pensava que o problema é caminharmos demasiado sem olhar.

Caminhamos mecanicamente, confiando que os pés saibam na perfeição quantos passos dar e para onde, acreditando que se desviarão dos corpos a locomoverem-se em direcção contrária, que saberão identificar coisas pouco simpáticas deixadas na calçada e que as evitarão enquanto a atenção dos olhos é sugada pelos poderes narcóticos de pequenas próteses com forma de ecrã.

O problema é falarmos demasiado sem falarmos realmente, pobres inaptos do discurso fácil de cento e poucos caracteres, do discurso feliz-eufórico ou indignado-furioso, pobres cidadãos do mundo a viver num mundo tão pequeno, onde só os nossos exactamente semelhantes têm densidade de pessoa e todos os outros são caricaturas de Humanidade por quem distribuir ódios e culpas.

O problema é que, caminhando sem olhar, desviando-nos mecanicamente do olhar do outro sem ver o olhar que não nos devolverá, porque também ele caminha mecanicamente, perdemos e perdemo-nos. Foi de pés no caminho e olhos bem abertos que o vi e que parámos os dois, falando por nada e por razão nenhuma, só por estarmos os dois ali, pés e olhos cruzados no percurso.

“Amei-a 48 anos, à minha Beatriz”, diz o velho antes de virar costas e avançar pela estrada que atravessa como se lhe pertencesse a ele e não aos automóveis, obrigados a desviarem-se daquele corpo que caminha sem medo, sem sequer reparar neles. “Perdi-a em Julho”, sussurrara por fim, antes de desaparecer na curva de uma tarde de Setembro, pés no caminho e olhos abertos ao mundo.

Crónica é uma rubrica do P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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