Paul Gauguin à procura dos paraísos perdidos

Em Paris, no Grand Palais, uma grande exposição – a maior dos últimos 30 anos – abre novas perspectivas sobre a totalidade da obra do pintor.

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Manaò tupapaú (L’Esprit veille), de 1892 Albright-Knox Art Gallery

Vinda de Chicago, onde esteve no Verão, chegou em Outubro ao Grand Palais, em Paris, e ali pode ser visitada até 22 de Janeiro, a grande exposição antológica Gauguin o alquimista, a maior realizada nos últimos 30 anos sobre a obra do pintor francês.

Rica de mais de duas centenas de obras, fruto da colaboração, na produção, entre o Museu d'Orsay e o Art Institute of Chicago, contou com empréstimos de importantes museus um pouco em todo o mundo, do Hermitage de São Petersburgo até ao Museu de Arte de Hiroxima, passando por dezenas de instituições na América do Norte e na Europa. Assim foi possível reunir um corpo de trabalho coerente e ilustrativo não apenas das várias fases da obra do artista, como das inúmeras disciplinas que abordou na perpétua busca de um éden terrestre que fosse simultaneamente alimento visual e fonte de felicidade.

É que Gauguin é decerto um artista que gera tantas ideias feitas como os seus contemporâneos pós-impressionistas, Van Gogh e Cézanne. Contudo, dos três, será também aquele cuja obra é menos conhecida e estudada. Dele, o grande público sabe provavelmente das estadias no Taiti, da amizade com Van Gogh e do episódio da orelha cortada (o pintor holandês terá cortado a orelha devido a uma zanga com Gauguin), e mesmo talvez das pinturas de figuras femininas exóticas e misteriosas. Mas possivelmente conhecerá muito pouco daquilo que é o cerne desta exposição: a curiosidade na experimentação de múltiplas técnicas e a fusão, sempre procurada e sempre conseguida, por vezes com sacrifícios imensos, entre a arte e a vida.  

De facto, Gauguin o alquimista centra-se no estudo e na apresentação de peças feitas em técnicas que se afastam claramente da bidimensionalidade da tela e das tintas. Esculturas e relevos em madeira, cerâmicas, gravuras, monotipias, leques, peças de mobiliário, utensílios domésticos, desenhos e livros são expostos lado a lado com as suas pinturas mais famosas, numa montagem simultaneamente cronológica e temática que evidencia sempre o processo criativo do artista. Intensamente moderno, Gauguin não se deixa confinar à etiqueta de pintor e está constantemente à procura do material, do processo que serve o conceito que definiu. Nisto, é radicalmente diferente de Van Gogh e de Cézanne. Nisto também, prova a sua consonância com um tempo em que, cada vez mais, a ideia importa pelo menos tanto como a sua materialização artística.

Do impressionismo à abstracção

A arquitectura da exposição ocupou uma ala do Grand Palais, distribuída por dois pisos, e criou seis núcleos de obras que se distribuem desde um "Laboratório de formas", correspondente ainda à vida em Paris, até à recriação em holograma da Casa do Gozar (Maison du Jouir) construída pelo próprio Gauguin nas Ilhas Marquesas. Adornada com relevos e esculturas em madeira, corresponde ao assumir pleno da marca metafísica que caracteriza a sua produção artística dos últimos anos.

Esse “Laboratório de formas” revela-nos logo à partida aquilo que as obras apresentadas ao longo de toda a exposição nos confirmam depois: que um artista se faz não apenas pelo talento, mas também pelo contacto e pelo convívio com os seus pares. Desses primeiros anos como jovem adulto em Paris, Gauguin guardou a amizade com Camille Pissarro e boas relações com os impressionistas, que decerto conhecia. A exposição mostra uma série de cabeças de criança feitas nessa altura por Gauguin, em cera, prováveis retratos dos filhos, que terá realizado depois de ver a Pequena bailarina de 14 anos, de Degas, uma figurinha em bronze com saia de tule mostrada no salão impressionista de 1881. Gauguin mostra-se maravilhado com a maleabilidade da cera, que já nesta altura conjuga com outras peças em madeira, executadas com uma síntese de meios notável.

Nesta primeira sala de Gauguin o alquimista, a montagem destaca ora as naturezas-mortas, com objectos específicos que são colocados em destaque – por exemplo, um pote da América Central que fazia parte da colecção do pintor –, ora esculturas em que o carácter simbólico da forma adquire já uma importância óbvia. Durante a década de 80, Gauguin faz várias viagens e estadias em localidades muito diferentes, como Pont-Aven, onde convive com os impressionistas, a Martinica, Paris, como é evidente, e Arles. As primeiras obras impressionistas, realizadas com um domínio muito seguro da cor e a famosa pincelada em vírgula que todos os membros do grupo adoptavam, decepcionam-no rapidamente. Acha o impressionismo muito próximo do retrato da realidade sensível, e muito afastado de uma característica espiritual, que, segundo ele, é a verdadeira missão da arte. Gauguin não podia sabê-lo, mas estava a lançar os fundamentos de todos os movimentos que se reclamaram de um olhar diferente, simbólico e espiritual, sobre o mundo ao longo de todo o século XX.

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La ronde des petites bretonnes (1888) NATIONAL GALLERY OF ART, WASHINGTON

Neste núcleo, intitulado O grande atelier, encontramos múltiplos testemunhos do trabalho realizado na Bretanha, onde a certa altura trabalha lado a lado com Emile Bernard. É aqui que se insere a confidência que faz a este colega de que toda a arte “é uma abstracção": "Infelizmente, somos cada vez menos compreendidos." Essa abstracção leva-o a pintar um cão cor-de-laranja, por exemplo, um cavalo verde, ou uma figura de Cristo amarela, anunciando, de certa forma, as futuras liberdades com a cor de um Matisse. Com o abandono progressivo do impressionismo, Gauguin começa a praticar uma pintura sem modelados, que propositadamente elimina os efeitos de escala entre as figuras – e, logo, a unidade espacial. Nunca abandona o contorno negro, o que contribui para encerrar as formas em arabescos que anunciam também o gosto pelos motivos vegetalistas da Arte Nova, praticamente contemporânea dos últimos anos de vida do artista. Ainda por esta altura, realiza inúmeras obras em grés, que a exposição agrupa sob o título de Monstruosidades.

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Retrato do Artista com Cristo Amarelo (1890-91) Rmn - Grand Palais (Musée d’Orsay)/RenéGabriel Ojéda

A pureza original

Estes trabalhos, a que Pissarro chamava depreciativamente bibelôs, são na realidade o suporte ideal para aquela que é já uma tentativa de regresso à pureza original da arte. Gauguin nunca desiste de procurar esta origem mítica, auxiliando-se para isso de paraísos terrestres que visita por diversas vezes. O Panamá, a Martinica, o Taiti – onde morrerá, em 1903 – são os destinos escolhidos e procurados, nos quais tenta viver exclusivamente do seu trabalho sem nunca obter o sucesso esperado. Os últimos núcleos da exposição, A imagética dos trópicos, Mitos e reinvenções e Na sua casa (este último apenas focado na recriação da Casa do Gozar, como já mencionámos), tratam exclusivamente desta obsessão, que é também aquela que preside à realização das grandes obras-primas do pintor francês, aquelas para as quais procura as sonoridades das línguas indígenas: Nave Nave Fenua, por exemplo, ou Tehura.

E, contudo, aquela que Gauguin imagina ser a pureza da vida dos taitianos já não existe. Com a colonização, e sobretudo com a influência da missionação cristã, bom numero de práticas culturais e religiosas desapareceu. Sabe-se hoje que Gauguin se inspirou em livros de viagem de ocidentais para escrever aquele que é o seu livro, Noa Noa, um relato ilustrado das antigas crenças taitianas que o pintor afirma ter aprendido com a sua companheira. Noa Noa, na exposição, ocupa um lugar de relevo numa destas últimas salas, sendo possível folheá-lo virtualmente num ecrã digital. Noutros pontos de Gauguin o alquimista, assistimos a documentários sobre a análise técnica, feita por equipas de restauradores, de peças escultóricas, sendo de realçar um relevo de uma mulher nas ondas, uma Baigneuse que se tornará, noutro local, a base de um relevo que tem por título Soyez mystérieuses.

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Soyez mistérieuses (1890) Rmn-Grand Palais (Musée d’Orsay)/Tony Querrec

Em 1891, em Paris, um crítico de arte, Albert Aurier, definia o simbolismo como uma arte “idealista, simbolista, sintética, subjectiva e decorativa”. Referia-se explicitamente à obra de Gauguin, e se hoje o adjectivo decorativo aplicado a uma qualquer obra de arte é quase sistematicamente pejorativo e conotado com a futilidade e a falta de profundidade conceptual, o que é certo é que, na altura, ele significava exactamente o contrário. Decorativa era então a forma obtida através de qualquer técnica, e que se podia justapor a qualquer tipo de suporte, servindo o propósito de pôr em marcha uma reflexão nada ligeira sobre a própria natureza da arte. Gauguin intuiu-o. Três anos depois da sua morte, em 1906, uma retrospectiva de pintura foi apresentada em Paris. Picasso viu-a, e encontrou nesta obra um eco fortíssimo do seu próprio interesse pela arte primitiva, mais especificamente pelas máscaras africanas. Nesse mesmo ano pintava As meninas de Avignon, a obra inaugural do cubismo, que de certo modo, e de uma nova forma, continua também as pesquisas de Gauguin, desta feita no século XX.

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