Harry & Meghan: um noivado que levanta o passado, presente e futuro da monarquia

O anúncio de que o príncipe Harry tinha pedido em casamento a actriz americana Meghan Markle deixou muitos dos seguidores da monarquia em estado de euforia. Mas o tom racista subentendido em alguns dos comentários veio pôr o dedo na ferida: afinal, o que significa hoje ser britânico?

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A família real britânica já está habituada às luzes e ao esmiuçar de tudo o que faz. Por isso, todos estavam preparados para a atenção que o namoro do príncipe Harry com a actriz norte-americana Meghan Markle teria – o quinto na linha de sucessão ao trono contou na primeira entrevista depois de anunciado o noivado que preparara a namorada para esse impacto. Contudo, pouco depois de ser conhecido o namoro, o Palácio de Kensington viu-se obrigado a vir a público denunciar “o tom implicitamente racial de algumas das peças de comentário” e “o flagrante sexismo e racismo dos trolls das redes sociais nos comentários de artigos da internet”. Em causa estava não só a posição social de Markle como o facto de ser filha de pai branco e mãe negra.

O aviso de Kensignton apontava na direcção de artigos como o do Daily Mail que referia o “contraste” dos antepassados de Markle  – "escravos nos EUA do século XIX" – com os de Harry. “Os dele incluem reis, rainhas e condes; os dela uma professora, um alfaiate e um trabalhador de uma loja de limpezas”, escrevia então o tablóide. Mais polémicas tornaram-se as declarações da colunista Rachel Johnson. No mesmo jornal, escrevia que Markle não passava o “teste de mãe”, por ser divorciada e ter alegadamente abandonado o ex-namorado assim que conheceu o príncipe. No final, ressalvava que o facto de Markle ser mestiça é irrelevante, mas escrevia que “os Windsors irão engrossar o seu sangue fino e azul com um ADN rico e exótico” e descrevia a mãe da actriz como “uma afro-americana com rastas e do lado mau da cidade”.

Citando a investigação do “historiador” Mario De Valdes y Cocom, o Washington Post veio recentemente validar a ideia de que a própria família Windsor tem antepassados com ascendência africana – uma suspeita que já vem de trás e que corre na internet como uma espécie de mito urbano.

Uma americana divorciada de 36 anos (mais três do que Harry), Markle não encaixa propriamente nos moldes convencionais da realeza britânica. A última vez que um monarca britânico (Eduardo VIII) quis casar com uma americana (a socialite Wallis Simpson), deu azo a uma crise constitucional que o levou a abdicar do trono. Mas os tempos são outros: Carlos, o primeiro na linha de sucessão, divorciou-se em 1996 da princesa Diana e casou-se em 2005 com Camilla Parker-Bowles, também ela divorciada.

Depois há a questão da raça que, quando não visivelmente ocultada, é apresentada como um sinal de evolução da sociedade a nível da diversidade e discriminação. Frequentemente com recurso a expressões como “ADN exótico”, “Família Markle muito pouco real” e “straight outta Compton”, em referência ao grupo de rap de Los Angeles N.W.A.

“Mencioná-la de forma positiva por ser uma pessoa exótica, por outro lado, também marca uma forma de racismo”, explica Juliana Santos Wahlgren, responsável sénior de advocacia política do European Network Against Racism (ENAR) ao P2. Wahlgren fala da “percepção social inconsciente” que revela.

Uma afirmação desta natureza pode não chegar a ser discriminatória, aponta, “mas é estereotipada”. Por outras palavras, trata-se de classificar um grupo da população, de ascendência africana, como “exótico e extraordinário”, reforçando e perpetuando estereótipos antigos, acrescenta. O problema com estes termos é que identificam as pessoas com diferentes etnias como filhos de emigrantes. Por mais que bem-intencionados, vêm pôr o dedo numa ferida: a questão da identidade para as minorias étnicas do Reino Unido e do significado de ser britânico. A escolha de palavras não é inocente: “porque descrevê-la como uma negra bonita causaria mais desconforto.”.

“Falar de racismo de maneira aberta nunca é um tópico confortável”, começa por acautelar Juliana Santos Wahlgren. “Ainda mais quando está ligado a imagens e instituições nacionais. Apesar de existir essa diversidade na sociedade, os negros britânicos ainda se sentem excluídos porque existe muita confusão entre tudo o que é definição de raça e tudo o que é definição de estrangeiro.”

Harry e Meghan Markle: aparição pública após anúncio do noivado Nigel Roddis/ reuters
Quem desenhou o anel foi o próprio príncipe e foi feito pela Cleave and Company, os joalheiros e medalhistas da rainha
O pedido de casamento foi feito no início deste mês, mas só segunda-feira 27 de Novembro se tornou conhecido FACUNDO ARRIZABALAGa/ reuters
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Harry e Meghan Markle: aparição pública após anúncio do noivado Nigel Roddis/ reuters

Mundo pós-"Brexit"

Tendo em conta a importância simbólica da família real no Reino Unido, os mais optimistas olham para a união de Harry e Meghan Markle como uma vitória para as minorias étnicas que se querem ver representadas na sociedade britânica de hoje. “Eu lutei à medida que fui crescendo com o sentimento que a britishness que eles [membros da família real] representavam me excluía. Essa exclusão importava. Fazia outras pessoas percepcionar ser britânico e ser negro como identidades incompatíveis”, escreve Afua Hirsch, autora do livro Brit(ish), no The Guardian.

Para esta cronista é evidente que “quando Meghan casar com Harry a relação da Grã-Bretanha com raça vai mudar para sempre”. Já Georgia Chambers, autora do blogue Breaking Tides e jornalista freelancer, vê o noivado como a história de duas pessoas famosas que se apaixonaram.

Para a jovem de 21 anos – que se identifica como mixed race – “a ideia de integração é usada para descrever um mundo racialmente tolerante que não existe”. Como “uma forma de provar a nós próprios” o quanto avancámos enquanto sociedade. Num mundo pós-"Brexit", comenta ainda ao P2, é “uma tentativa de pacificar tensões que efectivamente existem”.

Para Chambers, a família real não faz parte daquilo que a torna britânica. “A sociedade onde vivo e as pessoas com que interajo todos os dias é que desempenham um papel na minha identidade”, diz. “Não tenho nada contra a família real”, ressalva. “Não fizeram nada para me fazer questionar a forma como a sociedade está a evoluir. Para mim é um selo de tradição britânica. É simbólica dos nossos valores.” 

Será que a Meghan Markle a faz sentir mais representada? Chambers lança a questão e dá a resposta: “Não, não faz. Simplesmente porque uma pessoa é parecida comigo e se identifica como mestiça, não significa que vou partilhar experiências [com ela]. Não há uma experiência coesa de mistura de raças.” Naturalmente, indica, há pontos em comum como, por exemplo, a questão que Markle levantou num texto escrito para a revista Elle, em 2015, em que lembrava a sensação de se ver obrigada a escolher, nos formulários da escola, entre branca e negra. Nascida e criada em Los Angeles, Markle tem sido bastante vocal nos últimos anos em relação ao seu percurso em busca de identidade. “Não era suficientemente negra para os papéis de [actriz] negra nem suficientemente branca para os [papéis] de branca, ficando algures no meio como um cameleão étnico que não conseguia arranjar trabalho”, conta no ensaio para a revista americana. 

“Porque é que ainda estamos a falar de referências históricas que são claramente racistas”, questiona ainda Chambers, referindo-se a títulos como, por exemplo, “isto é que é mobilidade! Como em 150 anos, a família de Meghan Markle foi de escravos de algodão a realeza”, do Daily Mail. “Mesmo termos supostamente positivos para descrever uma pessoa de uma minoria, não são elogiosos. Usar palavras como exótica para descrever alguém de uma etnia diferente é uma forma de manter a distância e fazer essa pessoa sentir que é diferente”, defende.

Juliana Santos Wahlgren explica que isso acontece fruto de percepções que já estão interiorizadas. Ainda assim, diz, “como pessoa pública, pouco importa se foi bem-intencionado ou não. Existe uma obrigação de auto reflecção. Porque vai ter uma influência”.

Um dos comentários mais polémicos – que vários meios citaram, em tom de condenação – veio do Spectator, um meio tendencialmente conservador: “Obviamente que há 70 anos Meghan Markle seria o tipo de mulher que o príncipe teria como amante, não como mulher.” O artigo não mencionava os antepassados de Markle, mas considerava-a inadequada para mulher de Harry “pela mesma razão que Wallis Simpson” era. E descrevia “o elenco afiliado de relações embaraçosas [de Markle]” como a apoteose da “união do showbiz e da realeza” – que terá começado com Diana.

Mais uma vez, leva-nos inevitavelmente a questionar a relação entre a monarquia – uma instituição de importância para o peso da Grã-Bretanha no mundo – e uma sociedade que avança no sentido de maior inclusão. “Alguns de nós simplesmente vamos largar o nosso respeito pelo cargo de monarca da pessoa que o detém, quando a rainha se for”, lê-se na peça. “O lado pessoal já não vai ser político – as qualidades de dever, lealdade, discrição e consideração pelo aspecto santificado da monarquia vão morrer quando ela morrer.”

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Portugal, os mouros e os negros

O anúncio do noivado trouxe uma nova onda de notícias, investigações e comentários. No próprio dia, o Washington Post publicou um artigo a contestar a afirmação de que Meghan Markle seria o primeiro membro da realeza de raça mista. Com base nas investigações de Mario De Valdes y Cocom, a peça argumentava que a rainha Carlota de Saxe Coburgo – e consequentemente os actuais monarcas de Inglaterra – seriam “descendentes de um ramo negro da família real portuguesa: Afonso III e a sua concubina, Ouruana, uma moura”.

É uma história com pouca credibilidade, de acordo com Maria de Lurdes Rosa, doutorada em História medieval e docente no departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa. Além de colocar em causa o próprio autor da pesquisa – não tendo conseguido obter dados sobre as suas qualificações académicas ou publicações – esta considera questionáveis os métodos utilizados pelo mesmo para traçar perfis de figuras históricas. Destaca, por exemplo, a investigação de "traços negróides" em pinturas de época.

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Um artigo do Washington Post mencionava a rainha Carlota como “descendente de um ramo negro da família real portuguesa: Afonso III e a sua concubina, Ouruana, uma moura”, facto pouco credível para Maria de Lurdes Rosa, doutorada em História medieval

Se é um facto comprovado que D. Afonso III teve filhos de uma moura – sendo Martim Afonso Chichorro I um deles –, a ligação que Mario De Valdes y Cocom estabelece com a rainha Carlota (que viveu cerca de cinco séculos depois) é bem mais difícil de validar. “Como é que dos Chichorros se chegou à Carlota de Saxe Coburgo não faço a mínima ideia, nem como é que esta tinha traços negróides”, comenta José Augusto Sottomayor Pizarro, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e especialista em Afonso III. 

Valdes terá, de acordo com o Washington Post, começado a investigar a ascendência africana na rainha Carlota em 1967. “Descobriu que o médico real Baron Christian Friedrich Stockmar descreveu a rainha Carlota como ‘pequena e torta, com uma verdadeira face mulata”, escreve o jornal. Aponta ainda outras fontes de Valdes: Sir Walter Scott, que “escreveu que ela tinha uma ‘cor errada’” e “um primeiro-ministro”, que terá considerado “o seu nariz é demasiado largo e os lábios demasiado grossos”.

“Há uma evidente falta de fundamentação heurística em tudo isto e é de lamentar que se passem e reifiquem ideias com base em pesquisas históricas tão rudimentares quanto a observação de traços (supostamente) étnicos nas pinturas antigas, e pouco mais”, atira Maria de Lurdes Rosa. O facto de esta história ser tão facilmente construída sem grande fundamento histórico, é em si simbólico das “questões raciais na história”.

“Desde logo, o recurso aos Portugueses como óbvia solução para um elo em falta da raça africana/ mulata na ascendência de uma princesa da Europa no Norte é a [questão] mais gritante”, aponta a professora da FCSH. “Seria preciso saber quando e como surge esta solução, para conhecer melhor a sua natureza, mas é improvável que não esteja ligada à visão pejorativa dos países do Sul da Europa, em especial de Portugal, como inclinados à mistura racial (negativamente vista) com os africanos.”

Para a professora, o debate serve para colocar também em questão a “ideia de uma Europa ‘branca’, onde os negros escasseavam, e apenas eram inseridos em condições excepcionais”.  De acordo com a mesma, a aplicação dos estudos pós-coloniais à história medieval tem revelado a presença muito mais comum de negros na Europa medieval, bem como a profundidade do conceito de raça e de racismo.

É na história que encontramos muitas das pistas que nos ajudam a compreender o mundo em que vivemos e o real significado das coisas. Maria de Lurdes Rosa sublinha os aspectos relevantes que a reflexão sobre este “movimento” suscitam, entre os quais as “identidades, invenção de tradições, objectos de legitimação e o poder da internet na criação de realidades”.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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