As mulheres modernas e independentes

Estes casos são paradigmáticos, denotam ignorância acerca das dinâmicas de violência doméstica, desinteresse pelo contributo dos técnicos, e uma visão francamente estereotipada sobre as mulheres “modernas e independentes”.

1. O Supremo Tribunal Administrativo reduziu em 60 mil euros o valor da indemnização atribuída a uma mulher que ficara com lesões irreversíveis e uma incapacidade permanente de 73%, após uma cirurgia ginecológica na Maternidade Alfredo da Costa, com o argumento de que a sexualidade para uma mulher de 50 anos e com dois filhos era coisa de somenos. Na última segunda-feira, o Conselho da Europa aproveitou este exemplo para fazer uma série de recomendações sobre saúde sexual e reprodutiva das mulheres e combater aquilo que são os descarados estereótipos de género. E fez bem. Eles estão no meio de nós.

2. O Tribunal Judicial de Viseu, por exemplo, não valorizou as queixas de uma mulher vítima de violência doméstica por a mesma lhe parecer talvez demasiado emancipada, porque “denotou em audiência de julgamento ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido”. No acórdão pode ler-se que, dado o seu carácter forte e independente, “dificilmente a assistente aceitaria tantos actos de abuso pelo arguido, e durante tanto tempo, sem os denunciar e tentar erradicar se necessário dele se afastando.” O arguido foi absolvido de vários crimes de violência doméstica, de perturbação da vida privada e de injúrias. Foi condenado por posse de arma proibida.

3. O facto de o Conselho Superior da Magistratura ter aberto processos disciplinares aos dois juízes do Tribunal da Relação do Porto que invocaram o adultério para censurar uma vítima de violência doméstica, e desvalorizar as agressões de que foi alvo, parece ser um incómodo para juízes e juízas pouco sensíveis a qualquer tipo de escrutínio que não seja endógeno. A reacção de um grupo de juízes à decisão do conselho não se fez esperar. Para este grupo, criticar aquele acórdão no espaço público é uma ameaça à sua independência. Os mais interessados nesse combate aos estereótipos deveriam ser os próprios magistrados. Estes casos são paradigmáticos, denotam ignorância acerca das dinâmicas de violência doméstica, desinteresse pelo contributo dos técnicos, e uma visão francamente estereotipada sobre as mulheres “modernas e independentes”. Não se pode confundir independência com impunidade. Não se pode confundir a lei com a moral. O que os juízes e juízas devem fazer é aplicar a primeira e ignorar a segunda.

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