Regresso do optimismo europeu

A discussão do orçamento plurianual revelará, em breve, as primeiras brechas. Veremos então se o nível de ambição não desaparece à mesa de negociações.

Quem leia o Programa de Trabalho da Comissão para 2018 não acredita que, ainda há poucos meses, se escreviam obituários ao projecto europeu. As propostas políticas e económicas mostram optimismo para os derradeiros 14 meses de Jean-Claude Juncker à frente da instituição. Se serão exequíveis, dependerá, em larga medida, dos chefes de Estado dos 27.

Da crise existencial à sexta via

Os discursos d’O Estado da União de Juncker – que não estão prescritos nos Tratados, mas que desde o seu surgimento, em 2010, se posicionam como uma mecanismo de responsabilização da Comissão –, demonstram como os últimos anos foram penosos. Em 2015, a crise dos refugiados estava no seu auge, a Grécia prestes a colapsar e a Rússia invadira a Ucrânia. Em 2016, Juncker admitia a “crise existencial” de uma União que, apesar de melhorias, se deparava com elevados índices de dívida pública, fortes desigualdades sociais e picos de desemprego. Não esquecendo, claro, o resultado do referendo no Reino Unido, que ditara, meses antes, a inédita saída de um Estado Membro, e logo da segunda maior economia da União, com o maior poderio militar e membro do Conselho de Segurança da ONU.

Em 2017, muito mudou. Os 27 mostraram coesão nas negociações com o Reino Unido e, apesar de controverso, o acordo com Turquia reduziu o fluxo migratório no Mediterrâneo. Ocorreram eleições cruciais que deixaram a extrema-direita fora do poder e a economia mostrou melhorias: com crescimento de 2% na UE e 2,2% na Zona Euro e a descida do desemprego para os níveis mais baixos em nove anos. Estes resultados levam a Comissão de Juncker a ultrapassar em ambição os cinco cenários propostos no documento de reflexão, lançado em Março, sobre o “futuro da Europa”.

Vontade de mudar

A Comissão lançou 26 novas propostas, mas uma leitura atenta do Programa desdobra-as em mais de 50. São lançados debates estruturais para a União pós-2025, cuja implementação necessitará em alguns casos de alterações aos Tratados.

O ex-primeiro-ministro luxemburguês, que anunciou que não se candidata a um segundo mandato, quer ver um só Presidente da União (uma fusão do seu cargo com a de Presidente do Conselho Europeu), um Ministro Europeu da Economia e das Finanças (cargo que seria assumido por um futuro Comissário e Vice-Presidente, que acumularia essa pasta com a de Presidente do Eurogrupo), uma Unidade Europeia de intelligence (aka CIA Europeia), uma Procuradoria Europeia (já em discussão entre os 27), uma União Europeia de Defesa (“que a NATO deseja”, afirma) e uma Autoridade do Trabalho (para assegurar um mercado laboral “mais justo”).

O Programa da Comissão mostra também vontade política de reforçar a coesão social da União, numa aparente inflexão na resposta à crise económica – pressionada pelos efeitos da crise e por acordos com a esquerda europeia. Essa vontade será posta à prova nas negociações do orçamento plurianual da União, que se iniciarão em breve. Estarão os 27 preparados para ter mais UE sem prejudicar as verbas dos fundos estruturais? E, já agora, sem afectar as verbas para investigação e desenvolvimento, que o Comissário Moedas tanto quer ver reforçadas?

Inserido no Programa, o denominado “Pilar Europeu dos Direitos Sociais” contém diversas medidas para o futuro das relações laborais: problematização dos sistemas de segurança social dos 27; propostas de regulamentação com impacto na gig economy; ou melhoria do equilíbrio entre as dimensões profissional e laboral, com foco nas famílias com filhos e com cuidadores. Se passarem no Conselho sem serem “esvaziadas de conteúdo”, caberá, depois, a cada Estado Membro, a sua verdadeira implementação. Ao mesmo tempo, do lado do investimento europeu, a Comissão garante que o Plano de Investimentos para a Europa, terá gerado, até ao momento, 225 mil milhões de euros de investimento na economia, 4900 milhões em Portugal.

Digitalização, energia limpa, comércio livre

O Mercado Único Digital é dos sectores onde a Comissão mais tem avançado. Por que razão a UE não produz “unicórnios”? Por que razão não tem um Silicon Valley? Por que razão os europeus compram tão pouco online? Estará a democracia a ser desvirtuada pelo poder controlador das novas tecnologias? Num sector onde passar das ideias à acção não é fácil, a Comissão apostou forte.

Para 2018 destacam-se o lançamento do Pacote de Cibersegurança, proposta legislativa sobre imparcialidade comercial das plataformas online, Iniciativa sobre Fintech e Proposta sobre Crowdfunding e financiamento entre pares. Depois do fim do roaming em Junho, pretende a aprovação do Pacote de Telecomunicações, do Regulamento da Privacidade electrónica ou da legislação referente a Direitos de Autor. De destacar as acções decorrentes da Agenda para Novas Competências na UE, nomeadamente a aposta na formação de competências digitais dos cidadãos.

Em sintonia com o Acordo de Paris, a Comissão avança com propostas para transportes de mercadorias (promoção da intermodalidade), mobilidade urbana (veículos limpos), edifícios (eficiência energética) ou indústria (nova Estratégia Industrial). A Comissão aborda, também, a diversificação das fontes energéticas onde, não sem alguma polémica, abriu uma guerra aos combustíveis fósseis, procurando alternativas “limpas”. Neste ponto, a Comissão tem sido bastante pró-activa no que respeita à mobilidade eléctrica, muitas vezes pisando o risco daquela que deveria ser a neutralidade das suas propostas. Para 2018 prevê-se o lançamento das bases daquela que será a política de energia do futuro.

Na Direcção Geral do Comércio perdeu-se pouco tempo a lamentar a morte das negociações com os Estados Unidos. Pelo contrário: aproveitou-se a saída dos Estados Unidos do Transpacífico para acelerar acordo com Japão; e as ameaças de saída do NAFTA para, depois de fechado o Canadá, dar tracção às negociações com o México. Com a fase dois do Brexit adiada (i.e., com o início das negociações comerciais em stand by), a Comissão Europeia “intromete-se” na Commonwealth com a sugestão ao Conselho de abertura de negociações com a Austrália e Nova Zelândia – em teoria, o Reino Unido só pode começar negociações com países terceiros depois de sair efectivamente da UE, a 29 de Março de 2019. As empresas exportadoras nacionais podem começar a estudar estes documentos. É que estes acordos vão bem além da redução ou eliminação de direitos aduaneiros pois, entre outros pontos, incluem: remoção de barreiras não tarifárias; harmonização de standards e certificações ou promoção de cooperação regulatória.

Por último, e ainda no capitulo do comércio, o Parlamento Europeu e o Conselho acordaram numa nova Metodologia de cálculo antidumping e estão em negociações bastante avançadas para a Modernização dos instrumentos de defesa comercial. Pelo caminho, foi publicado um Quadro para o escrutínio de investimento estratégico na UE. A Comissão acha, hoje, que nem todo o investimento estrangeiro é necessariamente bem vindo e quer poder questioná-lo.

A UE de Juncker

A chegada à Comissão foi imediatamente assombrada pelo LuxLeaks. Juncker resistiu, rodeado de um Colégio de Comissários com forte peso político, com cinco antigos primeiros-ministros e 19 ex-ministros. Apontou 10 prioridades para o seu mandato e operou uma divisão hierárquica no topo: criou Comissários e Vice-Presidentes para trabalharem em equipa. Elegeu, também, um Primeiro Vice-Presidente, o socialista holandês Frans Timmermans, encarregue das relações com o Parlamento. As modificações operadas arriscam-se a perdurar. Segundo o Serviço de Estudos do Parlamento Europeu, 80% das medidas constantes nas 10 prioridades foram cumpridas. Não significa que estejam aprovadas mas, sim, que foram lançadas e que o debate está, pelo menos, a decorrer.

Neste mandato, destaca-se a Comissária com a pasta da Concorrência, Margrethe Vestager. À frente de uma equipa de 900 investigadores, Vestager aplicou pesadas multas à Google e ao Facebook. Paralelamente, e numa lógica que tem sido muito contestada, foram abertos processos de ajudas de Estado à Apple, Amazon, McDonalds, Fiat e Starbucks, nos chamados Tax Rullings. Apelidada de “czar das práticas anticoncorrenciais” pela revista Foreign Policy e amplamente aplaudida na última Web Summit, em Lisboa, Vestager tem marcado a agenda. Em 2018, será publicada uma proposta de taxação dos lucros gerados por multinacionais com a economia digital. Mais uma vez, veremos as diferenças entre aquilo que é publicado e o texto negociado pelo Conselho e Parlamento.

Segundo este programa, já se pode ser europeísta outra vez. As propostas apresentadas vão moldar, de certeza, a conjuntura económica e social nos próximos anos. Quanto à visão política para o futuro, Juncker e Macron partilham-na e seguem, com esperança, as negociações pós-eleitorais na Alemanha, particularmente entre SPD e CDU. Porque "mais UE" – convergência económica, coesão social, defesa, segurança alimentar, ciência ou energia – implica um orçamento comunitário com mais recursos. A discussão do orçamento plurianual revelará, em breve, as primeiras brechas. Veremos então se o nível de ambição não desaparece à mesa de negociações.

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