Chardonnay dos Açores? Não, obrigado

Tendo os Açores três castas brancas capazes de dar vinhos belíssimos e originais, não se percebe a razão de plantar outras variedades sem qualquer vínculo ao arquipélago.

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Miguel Manso

As provas cegas são sempre um tiro no escuro. Nem mesmo o melhor provador está livre de passar um mau bocado. Aquela do enólogo que dá a pior pontuação ao seu próprio vinho, com apreciações negativas pelo meio, é um clássico. Já vi alguns, bem reputados, a passarem essa vergonha. Também já fiz as minhas figurinhas tristes, como confundir um Bairrada com um Alentejo ou algo ainda pior. Quem disser que nunca se estatelou ao comprido está a mentir.

Na última Fugas Especial Vinhos escrevemos sobre uma prova cega de vinhos brancos e licorosos dos Açores que realizámos no Pico. Do habitual painel de provas da Fugas, participaram, além de mim, Álvaro Van Zeller (enólogo), Joe Álvares Ribeiro (administrador do grupo Symington), Beatriz Machado (directora do serviço de vinhos do hotel Yeatman) e Lígia Santos (a primeira masterchef portuguesa). Os resultados dão que pensar. No que me toca, confesso algum incómodo.

Sou um quase adicto dos vinhos brancos dos Açores, pela sua frescura e salinidade, mas também pelo seu contexto físico e pela sua espessura cultural e humana. Dos tintos não gosto mesmo nada. Os poucos que existem ou são de “cheiro”, feitos a partir de castas americanas e sem nenhum valor enológico, ou são de castas estrangeiras. Por melhor que elas sejam, os vinhos nunca serão bons. O clima e os solos açorianos “só” toleram os brancos — e mesmo estes com muita dificuldade. São brancos roubados à lava, à chuva e ao rocio do mar — e, por isso, são tão heróicos e singulares. Quando os bebemos não desfrutamos só dos aromas e dos sabores de castas com raízes profundas ao lugar, já com identidade e genética próprias. Estamos também a desfrutar de uma paisagem arrebatadora e desafiadora e a partilhar do sofrimento e dos sonhos de quem insiste em fazer viticultura num ambiente extremo. Só vendo se compreende o carácter transcendental dos vinhos açorianos, em particular os do Pico e da Terceira. São vinhos diferentes e especiais, capazes de nos surpreender e até emocionar, pelo lugar onde nascem e pela forma como nascem, com o conforto das pedras negras e o tempero do sol e do sal marinho. E também porque têm origem em castas desconhecidas para o resto do mundo mas com uma longa história na vida das ilhas e dos seus habitantes.

Ora, tendo os Açores três castas brancas — Verdelho, Arinto dos Açores e Terrantez dos Pico — capazes de dar vinhos belíssimos e originais, não se percebe a razão de plantar outras variedades sem qualquer vínculo ao arquipélago, como as portuguesas Fernão Pires ou as francesas Chardonnay e Sauvignon Blanc. Um vinho feito com qualquer uma destas castas vai ter a marca do clima e do solo açoriano e até pode ser muito agradável de beber, mas será sempre um vinho “estranho” aos Açores, mesmo que isso não se detecte quando o bebemos.

Na prova cega que realizámos no Pico, ganha pelo Curral Atlantis Verdelho-Arinto 2016, havia 15 vinhos secos (os licorosos foram provados e pontuados em separado) de todo o arquipélago. Sem sabermos, dois deles eram de castas estrangeiras: um monovarietal de Chardonnay e outro de Sauvignon com Fernão Pires, ambos da Quinta da Jardinete, da ilha de São Miguel. Ficaram, respectivamente, em terceiro e quarto lugar, superando vinhos mais renomados e bastante mais caros.

Não é a primeira vez, nem será a última, que isto acontece. Há uns anos, no Festival do Douro Superior, organizado pela que é hoje a revista Vinho-Grandes Escolhas, o melhor branco do concurso foi um Sauvignon Blanc. E no primeiro concurso dos vinhos de Portugal organizado pela Viniportugal, no qual participaram renomados críticos estrangeiros, o melhor tinto foi um Syrah.

Uma prova cega é uma prova cega e os resultados são sempre imprevisíveis. Valem o que valem e reflectem apenas a percepção momentânea de um conjunto de provadores que, tal como o vinho, também é volátil. Mas não devemos olhar com sobranceria para este tipo de provas, nem subestimá-las. Quanto mais não seja, ajudam-nos a perceber que muitas vezes agimos e criticamos com base em preconceitos ou ideias feitas. Lembram-se do célebre Julgamento de Paris? Em 1976, um hotel do centro de Paris acolheu uma prova cega que colocava em confronto alguns dos melhores vinhos brancos de Chardonnay e de Cabernet Sauvignon da Califórnia e da França. Entre os jurados, todos figuras respeitadas do sector, estava Aubert de Villaine, co-proprietário da mítica Domaine de La Romannée-Conti. Para surpresa geral, nos brancos, ganhou o americano Château Montelena Chardonnay 1973, que superou, entre outros, o Puligny-Montrachet Les Pucelles da Domaine Leflaive; nos tintos, o vencedor foi um vinho proveniente de uma vinha com apenas três anos de idade, o Stag’s Leap Wine Cellars Cabernet Sauvignon 1973, também da Califórnia. A representar a França, havia vinhos como o Château Mouton-Rothschild e o Château Haut-Brion, dois colossos. O resultado teve o efeito de um terramoto: desde aí, o universo do vinho deixou de girar apenas em torno do terroir francês.

Nos Açores, os vinhos da Quinta da Jardinete não vieram romper a ordem estabelecida. Mesmo assim, dão que pensar. Nos cinco hectares desta propriedade, já mecanizada, há também Merlot, Aragonez, Blaufränkisch, Pinot Noir, Cabernet Franc, Chardonnay, Fernão Pires, Sauvignon Blanc, Grüner Veltliner e Riesling. É uma espécie de ilhéu “Novo Mundo” no arquipélago dos Açores. Os seus vinhos — apresentados como sendo “artesanais, para expressarem melhor as características únicas” do terroir açoriano, como se o conceito de terroir se esgotasse no solo e no clima e não incluísse as castas e a tradição — até podem ser bem pontuados em provas cegas e ter muitos clientes locais. Mas, que o proprietário me perdoe, são vinhos fora do lugar e deste tempo e sem qualquer interesse para a região e o país.

Felizmente, a Quinta da Jardinete é uma excepção, não a regra. A revitalização da cultura da vinha no arquipélago está a ser feita, sobretudo, com as castas locais, já testadas e adaptadas. São estas castas que podem voltar a colocar os Açores no mapa dos vinhos (dizemos voltar, porque o Verdelho do Pico já foi muito famoso). Na verdade, já estão. Os vinhos da Curral Atlantis, da Azores Wine Company, da Casa Agrícola Brum ou da dupla Anselmo Mendes-Diogo Lopes, por exemplo, são a prova disso. E são também a confirmação de que os Açores têm tudo para, como titulava a Fugas, serem “a próxima certeza dos vinhos em Portugal”.

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