Os juízes têm de ser politicamente correctos?

Se é inequívoco que os juízes não têm de ser politicamente correctos, a verdade é que, no exercício das suas funções, os juízes têm especiais deveres em relação à comunidade.

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) decidiu instaurar dois processos disciplinares aos juízes desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, autores do acórdão de Outubro deste ano em que eram tecidas violentas considerações sobre o papel da mulher na sociedade e de que  recordamos curtos excertos: “...o  adultério  da  mulher  é  um  gravíssimo  atentado  à  honra  e  dignidade  do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. (...) Com  estas  referências pretende-se, apenas,  acentuar  que  o  adultério  da  mulher  é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.

O CSM decidiu abrir, não um processo disciplinar mas dois já que, no decurso das averiguações sobre este acórdão, foi desenterrado um outro de Junho de 2016 dos mesmos autores, em que eram tecidas considerações tais como: “uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral”. Em primeiro lugar, importa referir que este segundo acórdão foi “desenterrado” porque o mesmo, de resto tal como primeiro, não está publicamente acessível na base de dados dos acórdão dos tribunais superiores (www.dgsi.pt), o que não pode deixar de se lamentar. Pese embora todas as boas vontades, a verdade é que estamos ainda muito longe de uma publicação satisfatória das decisões dos nossos tribunais superiores, de forma a assegurar a justiça pública e transparente que é exigida pelos tempos em que vivemos.

Não se pense que foi evidente a decisão do CSM.  Quanto ao acórdão de Outubro deste ano, o CSM decidiu-se pela abertura do processo disciplinar só por 9 votos a favor com 8 contra e quanto ao acórdão de Junho do ano passado, a votação foi de 12 votos a favor e 5 contra.

Verdade seja dita, a abertura destes processos disciplinares representa – tanto quanto sei – uma novidade, uma vez que se vão debruçar sobre o conteúdo de decisões judiciais. É certo que não vão debruçar-se sobre se as decisões foram certas ou erradas porque para tal só são competentes os tribunais de recurso. O CSM teve o cuidado de esclarecer que os processos são abertos porque estará em causa a eventual violação dos deveres de “atuar no sentido de criar no público a confiança em que a Justiça repousa” e “zelo”, isto é, afastando qualquer apreciação do sentido da decisão. Mas, para os sectores judiciais mais corporativos, mesmo assim não deveria existir qualquer processo disciplinar porque se estará a por em causa a independência dos tribunais sujeitando-os ao crivo do “politicamente correcto” em resultado da agitação pública e mediática criada com a divulgação do acórdão de Outubro deste ano.

Ora se é inequívoco que os juízes não têm de ser politicamente correctos, podendo ser politicamente incorrectos e que o respeito pela independência dos tribunais é um valor matricial de uma sociedade democrática, a verdade é que, no exercício das suas funções, os juízes têm especiais deveres em relação à comunidade. O poder judiciário tem de ser especialmente respeitado – e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem-no sublinhado –, mas, também tem de se dar especialmente ao respeito de forma a, como lucidamente refere o CSM, “criar no público a confiança em que a Justiça repousa”. Porque se é certo que as decisões judiciais só podem ser alteradas nos tribunais de recurso, já o conteúdo das mesmas, em democracia, pode e deve ser analisado, discutido e sindicado nas mais diversas instâncias, nomeadamente pela opinião pública e/ou publicada. E se desse escrutínio, público ou reservado, resultarem indícios de violação de deveres a que os juízes estão adstritos, sempre deverão ser abertos processos disciplinares. Não por os juízes serem politicamente incorrectos mas por existirem indícios de que  foram incorrectos no exercício das suas funções, isto é, de que violaram os deveres funcionais a que estão obrigados.

Longe vão os tempos em que os juízes viviam em torres de marfim.

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