Os prémios literários

A  actividade literária, como o desporto e muitas outras actividades humanas, é um campo de batalha. O carácter hipercompetitivo e agonístico do mundo artístico-literário faz dele o lugar de uma luta simbólica pela consagração – um termo originalmente religioso que passou a ter um uso metafórico. A literatura viva, aquela que ainda não faz parte de um património nem foi classificada no cânone, é por definição o lugar de uma disputa renhida. Podemos mesmo definir a noção de literatura contemporânea de uma maneira sócio-estética: a literatura contemporânea é aquela sobre a qual não há consenso. A representação da vida literária como uma batalha encontra-se já em grandes autores do século XIX. Baudelaire, que foi simultaneamente poeta maldito e com a ambição carreirista de chegar à Academia, usou até a metáfora da esgrima e insistiu na necessidade de fazer um uso estratégico dos ódios, esse tesouro precioso que, segundo ele, era preciso não dilapidar e atingir os alvos certos. Mas esse tempo das grandes batalhas literárias ficou para trás.

A actual proliferação dos prémios literários visa precisamente reintroduzir uma dimensão agonística onde ela falta e corrigir o défice de capital simbólico da coisa literária e da vocação de escritor. E assim os prémios passaram, eles próprios, a lutar uns contra os outros pelo poder da legitimação literária, tentando fazer da literatura um acontecimento e procurando reactivar, até pelo escândalo e pela surpresa, as representações imaginárias que sobrevivem apenas como memória da época das grandes guerras literárias. O paradoxo dos prémios literários é que eles são dispositivos de consagração que já não consagram nada: o seu efeito acaba muitas vezes por ser precisamente o contrário, o de colocar os autores num campo que é só mundano, submetendo-os aos imperativos da comunicação pública do livro, apresentando-os como valores aos profissionais do livro e dos media e fazendo incidir sobre eles as sociabilidades literárias e os mecanismos publicitários.

A economia actual do sucesso já nada tem a ver com aquilo a que outrora se chamava glória literária, ainda que haja quem continue a usar esta expressão anacrónica ou, pelo menos, a pensar no horizonte dela. E assim os prémios literários, outrora a instância de legitimação mais desejada, ficaram diminuídos na sua importância e relativizados por outras instâncias que com eles competem. A lógica da consagração, que tinha como factor fundamental o reconhecimento pelos pares, está hoje enredada num movimento que não evacuou, é certo, a questão do valor, mas democratizou-a, ao ponto de pôr sempre em perigo aquilo pelo qual o escritor obteve o reconhecimento (é, digamos assim, uma versão moderna do princípio flaubertiano de que “les honneurs déshonorent”). Um escritor que se quer ver consagrado por prémios literários encontra-se numa situação paradoxal, tão paradoxal como o escritor que denuncia a comédia dos prémios literários, ao mesmo tempo que quer ocupar um lugar nela. Por isso, aliás, é que nunca nos desembaraçámos completamente da crença herdada do romantismo segundo a qual os imperativos de uma atitude desinteressada são uma garantia da excelência literária. A proliferação dos prémios criou ainda outro factor de erosão: a constituição dos júris. A reduzidíssima elite do prestígio já não é suficiente. Daí que já tenha emergido a voz denunciadora proveniente de uma autoridade plena de furor catedrático: há jurados que nunca passarão de alunos medíocres, gente que num exame de literatura seria incapaz de distinguir um Molière de um Lamartine.

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