Jackie Shane foi um tornado, a heroína secreta da soul

Uma das mais misteriosas histórias da soul dos anos 60 é agora revelada em pleno e na primeira pessoa. Any Other Way faz justiça a uma talentosa mulher negra nascida num corpo de homem.

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Nascida num corpo de homem, viveu como mulher quando isso era quase impensável: negra em tempos que legitimavam o racismo, transgénero antes de essa realidade ter uma palavra. Any Other Way reune os seus seis singles, um disco ao vivo que era quase impossível de obter e três gravações em concerto. É a primeira vez que Shane comunica com o público em quase meio século

Já falava com Jackie Shane há meses ao telefone quando decidiu conhecê-la. Douglas Mcgowan fez-se à estrada rumo à casa da cantora, em Nashville, no estado norte-americano do Tennessee. Bateu à porta repetidamente, sem sucesso. Telefonou-lhe e nem assim a convenceu a abrir a porta. “Não estou pronta, tem vergonha!”, disse-lhe Jackie. “Pedi-lhe que viesse à janela para me ver, mas ela não o fez e falámos ao telefone durante duas horas, comigo sentado nas escadas da porta de entrada. Voltei ao hotel. No dia seguinte, regressei com o contrato e deixei-o nas escadas. Dei uma volta ao quarteirão. Ela assinou-o e deixou-o cá fora, ao lado de fotos dela que podíamos usar. Até hoje ainda não me encontrei com a Jackie”, conta Mcgowan ao Ípsilon.

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Já falava com Jackie Shane há meses ao telefone quando decidiu conhecê-la. Douglas Mcgowan fez-se à estrada rumo à casa da cantora, em Nashville, no estado norte-americano do Tennessee. Bateu à porta repetidamente, sem sucesso. Telefonou-lhe e nem assim a convenceu a abrir a porta. “Não estou pronta, tem vergonha!”, disse-lhe Jackie. “Pedi-lhe que viesse à janela para me ver, mas ela não o fez e falámos ao telefone durante duas horas, comigo sentado nas escadas da porta de entrada. Voltei ao hotel. No dia seguinte, regressei com o contrato e deixei-o nas escadas. Dei uma volta ao quarteirão. Ela assinou-o e deixou-o cá fora, ao lado de fotos dela que podíamos usar. Até hoje ainda não me encontrei com a Jackie”, conta Mcgowan ao Ípsilon.

Foi assim que Jackie Shane disse “sim” à Numero Group, uma das mais importantes editoras de reedições do mundo. A Jackie de 77 anos que vive pacatamente em Nashville com os seus gatos é a mesma mulher cuja música soul afogueava noites nos Estados Unidos e no Canadá. Nascida num corpo de homem, viveu como mulher quando isso era quase impensável.

Any Other Way, agora editada pela Numero, é a primeira colecção do trabalho de Shane, reunindo os seus seis singles, um disco ao vivo que era quase impossível de obter e três gravações em concerto. É também a primeira vez que Shane comunica com o público em quase meio século, período em que se escondeu dos olhares e chegou a ser dada como morta.

A criança avançada

Ninguém parava Jackie Shane, nascida em 1940, em Nashville. Aos oito anos, a sua voz já impressionava, o que lhe valeu um convite para entrar num coro de adultos. Concordou com uma condição: não dar a mesada ao padre. Na escola, corria que se desunhava, “como se saltasse pelo ar”. Pediram-lhe que participasse numa prova de corrida entre escolas e Jackie respondeu: “Quanto é que me pagam?”. Mais tarde, para amealhar dinheiro, juntou-se a um vigarista que vendia curas “sagradas” (velas, água da casa de banho e óleos), de bairro em bairro. “Eu não era como as outras crianças. Era muito avançada”, resumiu a Rob Bowman na entrevista incluída no livreto de Any Other Way. Feita em 2016, foi a primeira verdadeira entrevista que deu na vida (a reedição levou-a a dar poucas mais).

Negra em tempos que legitimavam o racismo, transgénero antes de essa realidade ter uma palavra, Jackie Shane caminhou por conta própria, destruindo barreiras no percurso. Aos quatro anos, entretinha-se a experimentar os vestidos e os sapatos de salto alto da mãe. “A minha mãe entrava [no quarto] e eu estava sentada ao toucador, com o pó-de-arroz dela à volta da minha boca, batom e blush. A minha mãe ria-se”, conta. Aos 13, a identidade feminina saiu do espaço seguro do quarto: Jackie começou a ir maquilhada para a escola. A mãe apoiava-a. “Não há razões para chorares ou teres vergonha”, dizia-lhe. Jackie concluía: “Nasci mulher neste corpo.”

Entrou na indústria musical aos 15 anos, como baterista. No Verão de 1957 estava nos tops R&B com I miss you so, cantada por Lillian Offitt. Mas estava destinada a um papel maior. Começa a destacar-se nos palcos de Nashville por tocar bateria e cantar em pé. Mas aquele não era um lugar fácil para Jackie. O Sul da América tinha leis de segregação racial e, se já era difícil ser-se negro, mais ainda era ser-se uma negra num corpo de homem e homossexual. A gota de água foi quando Jackie viu afro-americanos serem espancados por um grupo de brancos.

Em 1960, saiu de Nashville e foi para Montreal, no Canadá. Encontrou uma cidade completamente diferente: “Nunca tinha visto tantos clubes nocturnos na mesma rua na minha vida. Jesus, tantos clubes nocturnos!” Num deles, tocava Frank Motley, conhecido por dominar dois trompetes ao mesmo tempo. Informado da presença de Jackie, Motley chamou-a ao palco. Cantou canções de Ray Charles e Bobby Bland, “incendiou aquele sítio”, recordou, em 2009, um dos músicos.

Era o início de uma parceria que duraria, com interrupções (devido a actos violentos de Motley), até ao fim da carreira de Jackie. Os concertos que a banda de Motley dava com Little Jackie Shane, em espaços como o Louie’s, em Boston, onde chegaram a tocar sete dias por semana, tornaram-se míticos. “Não conseguias entrar”, recorda Jackie. “Para manter as pessoas ordeiras punham altifalantes na rua. A polícia prendia pessoas porque estavam a parar o trânsito. Estava sempre cheio, dentro e fora!”

Tão mulher quanto possível

Jackie deu que falar em Montreal, Boston, Los Angeles, mas sobretudo em Toronto, onde viveu durante vários períodos espalhados entre 1963 e 1971. Na comunidade negra de Toronto, tornou-se uma estrela. Certa noite, chegaram quatro camionetas vindas do Michigan (EUA) com pessoas que a queriam ver. E Jackie não desiludia. “Podias ver que estava comprometida”, elogia Eric Mercury, cantor de Toronto, citado no disco da Numero. “Não apenas envolvida, mas comprometida. Ela tinha muito fogo. Nunca tínhamos visto nada perto disso em Toronto. Era como se um tornado entrasse na sala.”

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Em 1961, um homem maquilhado, com camisas de seda e abertamente homossexual era uma novidade. E um conjunto de ilegalidades: o Canadá só legalizaria a homossexualidade em 1969 e era proibido um homem estar vestido de mulher na rua. Quando saía dos clubes nocturnos, Jackie vestia um casaco para impedir encontros desagradáveis com a polícia. Numa curta entrevista nesses anos de fama local, identificou-se como homem. É só na longa entrevista que dá a Rob Bowman em 2016 que se afirma publicamente como mulher transgénero.

“É uma daquelas coisas de que não queres falar por outra pessoa, mas penso que a Jackie tinha uma identidade para a qual não havia nome naquela altura. O nome é ‘transgénero’, mas esse nome não existia nos anos 60, pelo que sei. As pessoas diziam drag queen ou travesti. A Jackie não era isso. A Jackie era tão mulher quanto a situação permitia. A Jackie diria a um jornalista que era homem por segurança pessoal, não tinha nada a ver com sentimento pessoal. A vida dela corria perigo por ela fazer o que fazia”, diz Mcgowan ao Ípsilon.

“É importante que todos se lembrem do contexto porque quando dizem que Jackie Shane foi uma pioneira isso não é uma frase vazia: a Jackie estava a fazer algo que ninguém tinha feito na música e a arriscar a sua vida para o fazer. Isso faz dela uma heroína. Quando começámos a falar, não tenho a certeza se a Jackie acreditava que, mesmo hoje, seria aceite pelo que é. Passei muito tempo a convencê-la de que o mundo iria saudá-la de braços abertos se concordasse em regressar. Fiquei verdadeiramente grato com as reacções ao álbum e com as suas entrevistas. Ela também. Ela acredita agora que fez-se justiça.”

“Queriam tanto destruir-me”

É no início da década de 1960 que Jackie grava canções como Any other way, uma versão de William Bell que se tornou o seu maior êxito, e Sticks and stones, que acelera o original de Titus Turner até ao êxtase – ambas estão na compilação da Numero, ambas foram registadas ao primeiro take. Na primeira, ouvimo-la a jogar com o duplo sentido da palavra “gay” (“Tell her that I’m happy, tell her that I’m gay”) – nem todos terão percebido, já que o vocábulo era ainda sobretudo usado como sinónimo de feliz.

Ouvimo-la em concerto, num interlúdio da incendiária Money (that’s what I want), original de Barrett Strong, a embarcar num discurso de ego, afirmação e liberdade individual, com métrica, ritmo e humor torrenciais: “You know what my slogan is? Baby, do what you want, just know what you’re doing. As long as you don’t force your will and your way on anyone else, live your life because ain’t nobody sanctified and holy.”

Sem acenar com bandeiras, quebrou barreiras para pessoas homossexuais e transgénero. “Era essa a minha intenção. O que eu via era injustiça. Vi ignorância. Dei muito, mesmo arriscando a minha vida. Havia pessoas que me queriam destruir, especialmente os polícias. Queriam tanto destruir-me, não fazes ideia, mas não conseguem. Não vou deixar que me destruam. Ria-me na cara deles. A estupidez é risível. Havia pessoas que me diziam na cara: ‘Tu assustas-me’. Eu olhava para elas e dizia: ‘Por favor, tu assustas-te a ti mesmo’”.

No discurso da interpretação de Money ao vivo incluída na edição da Numero, ouvimo-la dizer, entre risos, “sometimes is fatiguing being a Jackie Shane”. Era cansativo ser Jackie e talvez por isso tenha desaparecido da cena musical, em 1971. Antes disso, não mostrou interesse em trabalhar com a Motown, uma das editoras soul mais importantes de sempre, e disse “não” a George Clinton e aos Funkadelic, que, por volta de 1970, integraram a cena R&B de Toronto. “Um deles [Garry Shider] usava uma fralda [em palco]. Isso é demasiado louco para mim”, explicou.

Em 1971, estava em Los Angeles a descansar e com actividades discretas – como tocar pandeireta numa canção de Joe Cocker. Frank Motley, com quem se tinha incompatibilizado, pediu-lhe que voltasse a Toronto. Concordou, mas, depois de um concerto, Motley disse que não lhe ia pagar e ameaçou-a com uma faca. Em Dezembro desse ano, tudo acabou.

“Foi como se desaparecesse da face da Terra”, conta Jackie. Deixou mesmo de ouvir música para não se sentir tentada a voltar. “Penso que foi a acumulação de exaustão e pensar que talvez o mundo não estivesse pronto para isto. Não acho que haja uma razão secreta para a sua desistência. O marido da mãe dela tinha morrido, ela vivia sozinha em Los Angeles. A Jackie pensou que a mãe precisava do apoio de alguém – e a mãe era a sua melhor amiga”, acredita Douglas Mcgowan. “Percebeu que era mais feliz saindo dos holofotes.”

Viver e deixar viver

Nas duas décadas que se seguiram à saída de cena de Jackie, multiplicaram-se os rumores, um dos quais dando como certo que tinha sido assassinada. Mas, nos últimos anos, Jackie como que renasceu: a rádio canadiana CBC fez um documentário sobre ela em 2010, ainda sem certezas se Jackie estaria viva; a antologia de ensaios Any Other Way: How Toronto Got Queer pediu-lhe o título emprestado e atribuiu-lhe pioneirismo transgénero; na Yonge Street de Toronto, nasceu um mural da altura de 22 andares que põe Jackie entre os grandes da música que se fez naquela rua boémia – emoldurou a foto do mural que Rob Bowman lhe mandou; a Vintage Music reeditou o obscuro álbum ao vivo de Jackie, editado em 1967; e, finalmente, a Numero Group editou Any Other Way, o clímax desta (re)descoberta. E agora? Há quem a queira ver de novo num palco. “Ela ainda tem a chama”, acredita Mcgowan, que a imagina antes a dar mais entrevistas ou a fazer um podcast – “é fascinante” ouvi-la e tem “muita sabedoria a partilhar”.

Talvez a sua história tivesse que ser contada, mesmo que tal aconteça quase meio século depois de deixar de fazer música. Como lemos em Any Other Way: How Toronto Got Queer, “a história de Jackie é uma verdadeira história trans – no sentido original do termo – que atravessa géneros, sexualidades, classes e raças, o baralhamento de fronteiras que, mesmo no nosso tempo, muitas vezes parecem impossíveis de atravessar”. É uma vida de determinação, coragem, dor e alegria, uma vida que dava um filme (Mcgowan admite que há conversas nesse sentido).

Aos 77 anos, Jackie Shane observa o interesse à sua volta. “Pensei que seria esquecida. Mas não fui. Prova que o que fiz não foi em vão”, diz. “Espero ter dado algo às pessoas de que nunca se vão esquecer. Algo não apenas sobre a dança e os risos e tudo isso, mas sobre a vida. Dei o que tinha. Falava às pessoas e o que dizia era simples: ‘Vive e deixa viver. Todos queremos um pouco disso e todos devemos ter um pouco disso.’”