Acabará em excessão a correção da conceção?

Não cansa já, falar disto? Cansa, cansa. Mas cansa ainda mais ter de ler, todos os dias, tais misérias.

Há dias, saiu na imprensa um anúncio com este título, pago por uma respeitabilíssima instituição: “Concurso de Conceção para a criação do Pavilhão Expositivo de Serralves.” Primeira, e lógica, reacção: enganaram-se; trocaram os “ss” por um cê de cedilha. Mas, lendo mais atentamente, não faz qualquer sentido: como é possível concessionar algo que ainda não foi criado? Aqui o mistério desvenda-se: é um concurso de concepção, para conceber, imaginar, projectar, o tal pavilhão! E é nessa altura que a curiosidade (a tal que mata o gato mas não faz qualquer mossa – não confundir com moça – aos humanos) nos impele a ler o texto por detrás do anúncio. Não nos jornais, mas no site da respectiva instituição. E o texto é tão brilhante quanto o título, sendo um dos mais bem acabados exemplos do que a novilíngua abençoada pelo professor Malaca trouxe (não confundir com trouxa) à tão vetusta e “desatualizada” língua portuguesa. E lá vêm, por ordem de entrada em cena e em todo o seu esplendor, as palavras “arquitetura”, “projeto”, “conceção”, “projetos”, “detetadas”, “ação”, “fatores”, “atração”, “atividades”, “fatores”, “projeto”, “arquitetónica”, “arquitetos”, “ativar”, “arquitetónicas”, “coleção”, “selecionadas” e “respetivo”. Pela profusão de excelsas palavras, o texto devia ser “lecionado” nas escolas, como exemplo de “bom português”, para que se perceba o que os nossos ignorantes ancestrais andaram a perder. Mas como no melhor pano cai a nódoa (ou será, neste caso, o inverso?) lá vêm no mesmo texto, descaradíssimas, duas palavras de fazer benzer a menos crente das criaturas: “sectores” e “carácter”. Assim mesmo, com aquele detestável “ct” bem vincado e exposto aos olhares inocentes das criancinhas. Quem deixou assim visível tal orgia de consoantes? Tragam os “corretores”, mesmo os da Bolsa! Acudam-nos!

Por esta altura, alguns dirão: não cansa já falar disto? Cansa, cansa. Mas cansa ainda mais ter de ler, todos os dias, tais misérias. E elas são-nos atiradas aos olhos, pornograficamente, sem tento nem pudor. Quem ache que isto é má vontade, repare no que tais “correções” fazem nas escritas do dia-a-dia (assim, com hífenes, como deve de ser!). O incansável Facebook dos Tradutores Contra o Acordo Ortográfico fez uma recolha curiosa do que é o “atual” uso da palavra “excepção” por muita gente. Segundo o acordo ortográfico, deverá em Portugal escrever-se “exceção”, suprimindo-se o “p”. No entanto, veja-se esta elucidativa recolha dos benditos Tradutores: “essa é uma excessão” (Lusa); “estabelece a excessão” (Record); “com excessão da” (Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra); “à excessão dos” (Observador), “à excessão do escalão” (Jornal do Algarve); “não é excessão” (PT Jornal); “À excessão do cancro” (Universidade Fernando Pessoa); “pessoas sem excessão” (Diocese de Lamego).

Podem dizer: são erros passageiros. Serão? Vejam estes outros (da mesma inesgotável fonte), agora com “recepção”, que o acordo manda escrever “receção”: “recessão dos convidados” (Município da Nazaré); “com aviso de recessão” (Supremo Tribunal de Justiça); “num centro de recessão” (Barclays); “recessão dos convidados” (Associação os Montanheiros); “um ‘cocktail’ de recessão” (Geo PT); “AR (aviso de recessão)” (Município de Valpaços). Erros passageiros? E estes, também coligidos pelos Tradutores? “Conceção de crédito” (Sapo Lifestyle), “de conceção de crédito”, “exercícios de conceção de créditos” (Escola Superior de Gestão); “respeita à conceção de crédito”, “para aumentar conceção de crédito” (TVI24); “na conceção de um crédito”, “no ato da conceção”, “restrições na conceção” (ISG - Business & Economics School); “conceção de crédito” (Greater Porto); “na conceção de crédito aos” (ISCA, Universidade de Aveiro). Leram bem? Quando é com “ss” sai com “ç” e vice-versa, de tal modo que já não se percebe nada. Se é assim em gente com responsabilidades, o que será nas escolas?

Mas depois ainda há alegrias, e até ao ar livre. Se o anúncio procurava “arquitetos” e “arquitetura” vai ter dificuldade em encontrá-los, mesmo no Porto. Porque a Ordem dos Arquitectos é com “C”; a FAUP da Universidade do Porto idem; a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas não cedeu à “moda”; e o antigo quarteirão da Real Vinícola de Matosinhos exibe, com orgulho, o novo dístico de Casa da Arquitectura – Centro Português de Arquitectura. Sem “arquitetos” à vista. Mas se a correção da conceção acabar em excessão talvez a concessão mude de figura. Ou não?

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