Johnny Hallyday, o cantor que ofereceu a França o rock'n'roll

Ao ver Elvis no ecrã, descobriu um refúgio e uma fuga. Primeira grande estrela do rock'n'roll francês e ícone maior da cultura popular do país, Johnny Hallyday morreu esta quarta-feira, aos 74 anos.

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ERIC BOMAL/EPA

Houve quem lhe partisse os singles em directo, anunciando ao microfone que não mais se ouviria a sua voz naquela rádio. O general De Gaulle irritou-se quando, em Junho de 1963, viu centenas de milhares de jovens parisienses dançar o yé yé no concerto montado à volta dele, organizado pela revista Salut Les Copains. “Se têm tanta energia, será melhor pô-los a abrir estradas”, afirmou, indignado, o presidente francês. O radialista e De Gaulle, porém, representavam o ontem, Johnny Hallyday, é dele que falamos, representava o presente, representava a sua juventude, representava o rock’n’roll, em França, com sotaque francês e textura de sonho americano – o de Elvis e o de James Dean, entenda-se.

Johnny Hallyday, estrela maior da música francesa cuja carreira se prolongou, com popularidade incólume, por seis décadas, morreu esta quarta-feira na sua casa em Marnes-la-Coquette, Paris: tinha 74 anos e sofria de cancro no pulmão. Irrompendo na cena musical francesa em 1960, ano em editou a sua primeira canção, T’aimer follement, adaptação de Makin’ love, de Floyd Robinson, tornar-se-ia, no decorrer de uma longa carreira, no símbolo máximo do rock francês e num verdadeiro ícone da cultura popular do país, feito assinalável tendo em conta que era a música americana e a mitologia a ela associada que o inspirava e foi segundo ela que viveu a sua vida.

Não há muitos anos, enquanto habitante de Los Angeles, podíamos encontrá-lo a percorrer estradas poeirentas numa Harley Davidson, blusão de cabedal vestido e destino incerto – pararia num qualquer motel de beira de estrada para passar a noite, antes de seguir viagem novamente. Talvez tudo estivesse já escrito naquilo que foram os seus turbulentos primeiros anos de vida.

O pai, Léon Smet, belga sem lar fixo, abandonou-o e à mãe, Huguette Clerc, quando Johnny Hallyday, nascido Jean-Philippe Léo Smet, tinha oito meses. Cresceria com uma tia, Desta, e com o seu marido, Lee Halliday, casal ligado ao mundo do espectáculo, viajando por França e restante Europa. Foi por Lee que Jean-Phillipe trocou o Smet por Hallyday, foi através dele que conheceu o rock’n’roll de Chuck Berry, Bill Haley ou Little Richard. E foi ao ver Ritmo no Coração, filme protagonizado por Elvis Presley em 1957, que percebeu o que queria ser.

Nascido em 1943, ele que, consequência do pai ausente, crescera na turbulenta França do pós-guerra a ouvir chamarem-lhe “bastardo” ou “filho de boche”, encontrou no rock’n’roll e na vida rock’n’roll uma fuga e um refúgio – a vida no mundo do espectáculo, aprendera-a com a tia e o marido desta, a que chamaria pai, actuando desde muito novo no intervalo das suas actuações.

Nos anos 1960, tornar-se-ia a figura mais destacada da geração que, em conflito com os pais, abraçava uma nova música e protagonizava uma revolução social e cultural. Johnny Hallyday seria a corporização do rock’n’roll em França, o seu rosto, a sua voz, o seu grande embaixador, vertendo para francês as canções que iam marcando os tempos em França e nos Estados Unidos (eis a loucura do twist a chegar a França, com o Let’s twist again popularizado por Chubby Checker transformado em Viens danser le twist) e, principalmente, conquistando a nação com a sua voz poderosa e uma endiabrada postura ao vivo, apoiada ano após ano por cada vez mais ambiciosas produções de palco.

Coração no rock, sempre no rock, beneficiava do apoio de Charles Aznavour, que lhe compôs, com George Garvarentz, Retiens la nuit, grande balada dos primórdios, enquanto acolhia Jimi Hendrix nos seus primeiros concertos franceses – para assegurar as primeiras partes da estrela gaulesa, obviamente – e enquanto, fruto do seu desejo de se aproximar dos grandes do rock anglo-saxónico, tinha Jimmy Page, futuro Led Zeppelin, ou Steve Marriot, dos Small Faces, a tocarem nos seus discos como músicos de sessão.

Ao longo da sua carreira, vendeu mais de cem milhões de discos e cumpriu mais de 180 digressões, que atraíram cerca de 30 milhões de espectadores. Sempre atento à mudança dos tempos, avançou de metamorfose em metamorfose, passando do rock’n’roll para a soul e o rhythm’n’blues, daí para o psicadelismo, dele para o blues-rock, daí para o hard rock, contando pelo meio com a assinatura de uma ópera-rock (Hamlet, 1976) e flirts com a country e com o reggae.

Alma rebelde, amado à esquerda e à direita, por operários e banqueiros, manteve actividade ininterrupta, manteve-se ano após ano nas capas de revistas e jornais franceses, que registavam as novidades dos concertos, os carros espatifados a alta velocidade, a boémia alimentada a cigarros, álcool e cocaína (dedicou a esta última uma canção, Lady Divine) ou a agitada vida amorosa (casou cinco vezes, a primeira com Sylvie Vartan, outro ícone do yé yé, em 1965, a última, em 1996, com a sua agora viúva, a modelo Laeticia Boudou). Escreve o Libération: “Era a sua receita mágica: esta força que o habitava. Uma força desequilibrada, que muitas vezes o dominava mais do que ele a controlava, empurrando-o frequentemente a mergulhar não importa em quê."

Paralelamente à música, teve uma carreira no cinema – menos profícua, naturalmente –, mas diversa: integrou-se no universo do western spaghetti em O Especialista, de Sergio Corbucci (1969), foi dirigido por Godard em Detective (1985) e por Johnnie To em Vingança (2009). Fosse qual fosse a pele que vestisse, em palco, em estúdio ou em tela de cinema, foi sempre o ícone Johnny Hallyday, o miúdo que decidiu ser estrela rock’n’roll, “o ídolo da juventude”, como lhe chamou o amigo Jacques Chirac quando o condecorou com a medalha da Ordem Nacional da Legião de Honra. Estávamos em 1998 e Johnny Hallyday tinha 55 anos.

Johnny Hallyday no concerto do dia em que fez 50 anos REUTERS/ Philippe Wojazer
Johnny Hallyday no concerto do dia em que fez 50 anos REUTERS/ Stringer
Johnny Hallyday, 1995 REUTERS/Eric Gaillard
Johnny Hallyday (à dir.) com a sua mulher Laeticia Boudou (à esq.), 1996 REUTERS/Mousse
O então Presidente francês Jacques Chirác (à dir.) entregou, em 1997, a medalha da Ordem Nacional da Legião de Honra a Johnny Hallyday (à esq.) REUTERS/ Philippe Wojazer
A 4 de Setembro de 1998, cerca de 80 000 fans do cantor francês esperaram várias horas para assistir a um dos três concertos comemorativos dos 55 anos de Hallyday. O concerto foi cancelado por causa da chuva REUTERS/Mousse Mousse
Paris, 1998. Primeiro dos três concertos comemorativos dos 55 anos de Hallyday REUTERS/Stringer
Johnny Hallyday durante a 59.ª edição do Festival de Veneza, em 2002 LUSA/CLAUDIO ONORATI
Actuação no Baalbek Festival, Líbano (2003) LUSA/NABIL MOUNZER
Concerto em Bruxelas, na Bélgica (2006) LUSA/ERIC BOMAL
Concerto no estádio de Saint Denis, em Paris, França (2009) Reuters/Philippe Wojazer
Johnny Hallyday durante a 62.ª edição do Festival de Cannes, em 2009 REUTERS/ERIC GAILLARD
O cantor francês foi homenageado na 24.ª edição dos prémios franceses “Victores de la musique”, em 2009 Benoit Tessier
Johnny Hallyday durante a sua actuação na Praça da República francesa, em 2016, na cerimónia dedicada às vitimas dos ataques terroristas de 2015 LUSA/YOAN VALAT
Os fãs estão a juntar-se à porta da casa onde vivia Johnny Hallyday, em Marnes-la-Coquette, nos arredores de Paris Reuters/BENOIT TESSIER
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Johnny Hallyday no concerto do dia em que fez 50 anos REUTERS/ Philippe Wojazer
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