Uma mão cheia de enganos

A História deve ser feita com distanciamento emocional, isenção e rigor. História e moral são coisas diferentes.

O sociólogo Elísio Macamo respondeu (de novo) a um artigo meu e voltou a enganar-se. Quando diz que “Miller está completamente equivocado com a tese do economicídio” é Macamo quem se equivoca, por distracção, má leitura do que eu escrevi ou por não estar familiarizado com o assunto. Foi Drescher, e não Miller, que defendeu — e com razão — a tese de que a decisão da Grã-Bretanha de acabar com a escravatura foi um suicídio económico, algo contrário aos seus interesses materiais e motivado por razões políticas e ideológicas. Sim, houve uma época em que se julgou terem sido interesses económicos egoístas a levar os britânicos a pôr fim ao sistema escravista. É uma tese marxista de 1944, repetida pelo antropólogo Eric Wolf, em quem Macamo se apoia. Essa tese ainda é popular em certos sectores, nomeadamente nas ex-colónias, talvez por ser uma forma de apoucar a iniciativa abolicionista dos países ocidentais, e Macamo recorre a ela sem aparentemente se dar conta de que a dita tese foi substancialmente demolida, como até os historiadores da escravatura marxistas reconhecem.

Macamo esquece, aliás, que não foi apenas a Grã-Bretanha que aboliu a escravatura. Todos os países ocidentais o fizeram. Ora, onde estarão os interesses económicos na abolição dinamarquesa, por exemplo? Ou na holandesa? Ou nas leis abolicionistas portuguesas? Não se vislumbram. As medidas abolicionistas em Portugal, como noutros países, avançaram por razões ideológicas e políticas, e é importante sublinhá-lo para lembrar aos leitores que houve, no século XIX, milhões de brancos que se indignaram sinceramente com a existência da escravatura negra e que desenvolveram enormes esforços para lhe pôr fim. É que aqueles que continuam a agarrar-se a uma teoria ultrapassada e a afirmar que foi sobretudo a economia que levou ao fim da escravatura costumam ignorar tudo isso (como Macamo olimpicamente ignorou).

Elísio Macamo tende a debater esta questão não na sua esfera própria — a história da escravatura — mas sim no campo da lógica e da filosofia moral. Contudo, também aí se engana. Defendi no meu anterior artigo que aqueles nossos antepassados que toleraram, autorizaram e praticaram a escravatura negra tinham um entendimento dos valores que lhes permitia traficar e escravizar pessoas de certos grupos humanos. Afirmei também que os personagens históricos devem ser avaliados segundo os critérios do seu tempo e que Macamo e outras pessoas não vêem isso porque são “presentistas”, isto é, olham para o passado e julgam-no a partir dos padrões de hoje. Têm uma abordagem ética mas não uma abordagem histórica das realidades passadas — pensam fora da História.

Nesta sua réplica, Macamo sugere que essas minhas considerações, se aplicadas à Alemanha nazi, levariam a desculpar as atrocidades de Hitler com o argumento de que ele teria agido de acordo com “os padrões então válidos”. Mas não é assim. Hitler não agiu de acordo com os padrões do seu tempo. Nos anos 30 e 40, aquilo que os nazis fizeram já era considerado crime (excepto para os próprios nazis, claro, que ajustaram as leis à sua medida). Grande parte do mundo não via as coisas como eles e enfrentou-os nos campos de batalha, acabando por vencê-los, julgá-los e condená-los. Os nazis não agiram de acordo com os padrões do tempo. Mas os que, nos séculos XV a XVIII, praticaram a escravatura (ou pactuaram com ela) tanto em África, como na Europa, Ásia e América, agiram porque em nenhum desses continentes a escravatura era considerada crime. Só começou a sê-lo a partir de finais do século XVIII e graças ao advento e triunfo de uma nova ideologia e de um movimento político nascidos no Ocidente: o abolicionismo.

Elísio Macamo recorre novamente a Hitler para me contestar num outro ponto. Eu afirmei (e reafirmo) que, no tempo presente, os países ocidentais não precisam de pedir desculpas pela escravatura para renovarem o compromisso com os seus valores, pois a aversão à escravidão e ao tráfico de pessoas está adquirida e sedimentada na cultura ocidental. O meu contraditor discorda e alega que “durante o nazismo se praticou a escravatura em forma de trabalho forçado”. Diz também que até há pouco a África do Sul governada por brancos praticava a segregação racial, tal como, aliás, se fazia nos EUA. Ora eu chamo a atenção de Macamo para três coisas: 1) A escravidão no Ocidente acabou há pelo menos 130 anos. A época de Hitler foi um abominável e dramático momento de 12 anos que não representa o que tem sido o mundo ocidental desde o século XIX até agora. É excepção e não regra; 2) Segregação e trabalho forçado não são escravatura. A escravatura, entendida no sentido de escravidão, implica a posse das pessoas, e misturar tudo isso num mesmo saco não ajuda à clareza conceptual. De qualquer forma, e mesmo nos casos da África do Sul e dos EUA, estamos perante anomalias altamente contestadas no resto do mundo ocidental e que, felizmente, cessaram; 3) Macamo está centrado nas malfeitorias dos brancos. Ignorará que o Haiti negro teve trabalho forçado logo no tempo de Toussaint e Dessalines, os “libertadores”? Ignorará que a escravatura se praticou e ainda pratica no mundo muçulmano? Por que é que esses e outros factos não entram na sua equação? Porque ele segue, no âmbito deste debate, a estratégia do vaso fechado, ou seja, acantona-se na convicção de que, no que toca à escravatura, os portugueses (e outros ocidentais) têm um problema com os seus próprios valores e, assim sendo, o que se passa e passou no resto do mundo não é tido em conta. Mas que cómodo!

É nessa óptica de vaso fechado que o meu interlocutor diz que eu devo ter “um grande desprezo por toda a história da filosofia ocidental para achar que a escravatura, quando foi praticada, não violava preceitos morais”. Mas não é essa a questão — Macamo cai constantemente no erro de pensar e de julgar fora da História e quer que eu o siga nesse erro. Para o que está em causa não interessam os juízos morais que agora fazemos sobre o que sucedeu no passado distante. Interessam os juízos morais dos homens desse tempo, pois era por eles que conduziam as suas acções. É isso que é historicamente importante. Os ocidentais que durante séculos foram permitindo a utilização de escravos não ignoravam a ética mas a forma como resolviam os problemas e dilemas morais que a época lhes colocava era diferente da nossa.

Santo Agostinho dizia que a escravidão era uma consequência do pecado e, uma vez que o pecado original marcava toda a humanidade, ninguém seria inocente, cabendo a Deus indicar quem devia ser escravo e quem senhor. A escravidão faria parte do desígnio de Deus e da ordem divina das coisas e, ao longo dos séculos, foi-se construindo um edifício ideológico que fundiu e harmonizou o pensamento das principais autoridades da Antiguidade com o dos teólogos cristãos. Daí que questionar a escravidão equivalesse a contestar concepções fundamentais de propósito divino e de destino humano. Não admira que esse edifício ideológico tenha permanecido quase intocado durante a Idade Média e grande parte da Idade Moderna. Macamo discorda desta minha avaliação? Então seria útil que nos dissesse que filósofos e teólogos anteriores a meados do século XVIII tinham um pensamento anti-escravista e a convicção de que a escravatura violava a tal ponto preceitos morais ou mandamentos religiosos que devia, pura e simplesmente, ser proibida. O único que me ocorre é Jean Bodin. Mas Bodin também considerava que os pais podiam matar os filhos e que as pessoas acusadas de bruxaria deviam ser deitadas à água para se verificar, consoante flutuassem ou se afundassem, se eram ou não possuídas pelo demónio. Sim, Elísio Macamo, a época de Bodin (século XVI) era muito diferente desta em que vivemos.

É essa diferença que os historiadores estudam para compreender o passado em vez de o julgar e condenar. Aparentemente Macamo não entende o que é a História. Quando nos diz que ela “não é indiferente ao que ofende o nosso sentido moral”, está de novo enganado. A História deve ser exactamente o oposto. Deve ser feita com distanciamento emocional, isenção e rigor. História e moral são coisas diferentes. O historiador, enquanto cidadão, terá opções, inclinações, paixões, mas a História que ele faz tem de ser tanto quanto possível neutral e verdadeira. Não deve ter causas, nem emotividades, nem preferências. Só assim terá valor. Elísio Macamo termina o seu artigo insistindo na ideia de que “é possível pensar o passado fora da História”. Sim, possível é, mas é errado.  

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