Eutanásia: “A lei não pode induzir sofrimento adicional ao doente”

O presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Jorge Soares, defende que uma lei da eutanásia não pode pressupor processos tão longos que se tornem castigadores para o doente. Sobre a possibilidade de haver um referendo sobre o tema, diz não estar certo "que seja um instrumento eficaz".

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Jorge Soares é presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida Ricardo Lopes

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) termina nesta terça-feira um ciclo de 12 debates, iniciado em Maio, sobre a eutanásia. Depois de percorrer várias cidades a Norte e Sul do país, discutindo desde aspectos médicos com as diversas ordens a questões mais filosóficas ou legais, o encerramento é em Lisboa, na Fundação Champalimaud. De manhã e à tarde vão estar em debate as experiências de quem já pratica legalmente a eutanásia, em países como a Bélgica, a Holanda e Luxemburgo, ou onde vigoram outros modelos, como em França ou no Reino Unido (que chumbou a legislação há dois anos).

Do ciclo resultará um livro que resume as várias intervenções nestes últimos meses. Um dos capítulos será sobre a comparação legislativa, explica Jorge Soares, presidente do CNECV. Sem nunca se querer posicionar a favor ou contra a legalização da eutanásia, defende porém que, a existir uma lei, ela não pode “induzir sofrimento adicional”.

Que tom final é que o debate sobre a legislação nos vários países dará a este ciclo? Há países com molduras alternativas à eutanásia que podem servir de modelo para Portugal?
Entendemos que, pela dificuldade do tema, devíamos convidar pessoas que já pensaram muito no assunto ou países que têm molduras legislativas sobre eles.

Os países que já têm legislada a eutanásia são a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo. A Suíça tem um modelo diferente, que não é público: existem determinadas organizações que mediante pagamento satisfazem um pedido de suicídio ajudado — alguém que pede a alguém os fármacos e condições para pôr termo à vida.

Tínhamos três objectivos. Informar: as pessoas estão muito desinformadas, não sabem o que é a eutanásia, o suicídio ajudado, a sedação profunda, a futilidade terapêutica… Levámos a informação onde foi possível. O segundo objectivo era estimular a discussão sobre estes temas. As pessoas têm muita dificuldade em falar da sua própria morte. É preciso que se antecipem os cenários para que tudo fique mais fácil no momento em que vier a acontecer. O terceiro era recolher opinião porque o conselho recolhe opiniões nos seus pareceres e relatórios. Para fazer a nossa opinião é preciso ouvir a opinião de muitas pessoas.

Ouviram especialistas de áreas muito diferentes, da filosofia à medicina, da religião ao direito: sai deste ciclo de debates com outra perspectiva? Foram suficientes?
Quem anda a pensar nestes assuntos há algum tempo, e as pessoas da ética têm obrigação de o fazer, não é grandemente surpreendido sobre as opções. Mas temos de ter a percepção do que as pessoas pensam e isto foi importante. E temos de colocar as pessoas face a informação relevante, para que tomem posição.

Há toda uma camada da população que não vai aos debates, por não ter acesso a esta informação devido a factores como a condição socioeconómica, falta de tempo, etc. Como se chega a elas?
Esta convocatória foi, muito provavelmente, insuficiente. Pela primeira vez fomos às cidades ter com as pessoas, e nas respectivas cidades o tema foi objecto de alguma publicitação, discutido em algumas tertúlias, atingiu algum efeito de bola de neve. Não chegámos a toda a gente — as pessoas de quem falou são aquelas que são sempre excluídas de alguma discussão com robustez intelectual e gostaríamos de conseguir ter maneira de ter essa vontade melhor expressa. Também nos disseram muitas vezes ‘porquê discutir isto agora?’

Aliás, também já o perguntou várias vezes.
Porque foi o que eu ouvi. Há sempre o argumento: mas adiar até quando? Isso não pode ser um instrumento dilatório para empurrar esta discussão. Mas acredito que os deputados querem fazer boas leis e para isso é preciso ouvir —  e para ouvir é preciso tempo. Como diz Montaigne, aquilo a que todos diz respeito, por todos deve ser tratado.

Não afastou a hipótese de referendo.
Não estou certo que seja um instrumento eficaz: depende da pergunta. Este é um assunto que pode despertar paixões violentas e obscurece aquilo que é a boa leitura e boa percepção da vontade das pessoas.

O conselho fará recomendações?
Não é para isso que existe. O Conselho tem que se pronunciar sobre um projecto de lei que foi remetido para a Assembleia da República do PAN. Sabemos que há outro do Bloco de Esquerda, mas que ainda não recebemos.

Quais as principais linhas desse parecer?
Está em preparação.

Dos relatos dos 11 debates, dá a sensação que se falou mais dos argumentos contra do que a favor da eutanásia.
Não tenho esse juízo em termos de balanço. Há argumentos muito bons de ângulos a favor e argumentos muito bons de ângulos contra.

Como presidente do conselho qual é a sua opinião?
Se lhe desse a minha opinião estaria a comprometer uma decisão que tem de ser tomada em colectivo. Sendo médico, e tendo trabalhado no Instituto Português e Oncologia durante tantos anos, percebo melhor a multiplicidade de situações e a multiplicidade da maneira como as pessoas encaram o sofrimento e o fim.

O bastonário da Ordem dos Médicos está manifestamente contra a legalização da eutanásia. Isso pode ser um impedimento?
Respeitamos muito o pensamento das corporações, mas temos que colocar esta decisão num patamar completamente diferente, no confronto dos valores — a autonomia, a autodeterminação, a liberdade, a vida, a compaixão, a solidariedade. Balizam a nossa decisão. As opiniões segmentadas das corporações entram em linha de conta mas não podem bloquear a decisão. Aliás, as ordens estão representadas no Conselho, podem aí tomar posição — mas cada conselheiro não representa a estrutura que o designou.

Tem sido evocada a alteração do Juramento de Hipócrates, que prevê agora a premissa de respeitar a autonomia e a dignidade do doente. Esta premissa abre a porta à eutanásia?
Esses — o respeito pela autonomia e dignidade do doente — são os argumentos que fundamentaram as decisões nos países em que a eutanásia está legalizada. A questão da autonomia é mais complexa: a minha autonomia de pedir está sempre limitada pela autonomia de quem acede ao meu pedido. A autonomia é relativa. Se eu pedir ‘quero morrer’ o outro pode responder ‘isso não faço’. A autonomia e a consistência da vontade sofrem muitas alterações no processo da notícia, da desesperança, da depressão… É isso que faz com que, nos países que têm suicídio ajudado, o número de pessoas que peça para morrer e o que morre não seja igual.

Por isso há o requisito de o pedido de eutanásia ter que ser reiterado.
Sim, de ser reiterado e consistente. E a avaliação do pedido também é subjectiva. Se assim não fosse, não seria necessário passar tantas barreiras, que têm a ver com os riscos. Estamos a falar de um assunto com tanta sensibilidade que é necessário ter mais do que uma opinião.

O CNECV foi criticado por deputados dos partidos que apresentaram propostas, do BE e do PAN, por estar a promover agora os debates — foi interpretado como uma tentativa do conselho se imiscuir nos órgãos de soberania.
Os partidos e os deputados querem fazer boas leis. Neste caso em particular, se querem fazer boas leis, é ouvindo as pessoas. Houve uma má interpretação dos deputados entendendo que o Conselho estaria a corromper o terreno. O Conselho tomou esta iniciativa, recebeu um pedido de parecer, portanto entendeu que devia ouvir as pessoas. O CNECV não faz política. 

Há números de pedidos em Portugal, estimativas?
As pessoas que fazem esses pedidos fazem ao seu médico assistente e tudo se passa na intimidade da relação médico-doente. Se há alguma maneira de satisfazer esses pedidos, faz parte daquilo que é o segredo. Não há nenhum organismo em Portugal que o faça.

Por que é que não há muitas vozes de médicos a favor da legalização da eutanásia, como houve em relação à do aborto?
Em relação ao aborto todos os dias muitas mulheres morriam, apareciam nos serviços de urgência — mulheres novas, que não tinham que morrer. Aqui a situação é diferente, são pessoas que têm um fim inexorável a curto prazo. [No caso do aborto] há uma resposta de revolta a uma situação que colocava mulheres em risco de vida. Isso despertou uma reacção que esta situação não desperta.

A causa não mobiliza os médicos por serem treinados para salvar vidas e a ideia de provocar a morte ser o oposto?
Num dos debates houve um depoimento muito interessente do professor Manuel Sobrinho Simões que disse: ‘Sou a favor da eutanásia mas que ninguém mo peça porque não sou capaz de o fazer.’ Em Aveiro o Dr. Nuno Miranda referiu que na altura em que foi aprovada a eutanásia na Holanda, ele estava lá a estagiar e o chefe de serviço acedeu a um pedido de um amigo — e durante um mês não esteve bem. Uma coisa é os médicos serem favoráveis, outra é disponibilizarem-se para terminar a vida num processo letal. Há médicos que se disponibilizam para isso, mas julgo que a maioria não o fará.

No caso da Holanda tem sido relatado o aumento das mortes por eutanásia. Pode-se tirar daí alguma conclusão?
Esse é o argumento da “rampa deslizante” — quando se proporciona qualquer coisa às pessoas, isso passa a ser mais vulgarizado. Pode ser que sim, mas acho que a história é muito curta e temos que ter mais dados. Tenho em boa conta os médicos holandeses, não acho que exista, deles, alguma parte de alívio deontológico nesse sentido.

Quais são as suas maiores dúvidas em relação à eutanásia?
Se alguém o fez, por compaixão, se o médico administrou opiáceos ou acelerou a morte do doente acho que não deve ser penalizado.

Isso não é muito mais prática comum do que aquilo que é relatado?
Quando os doentes estão mal, em falência respiratória, muitas vezes é difícil definir a dose. Não digo que seja prática deliberada. Mas o alívio da dor pode levar a uma escalada de administração da dose e essa pode conduzir à paragem do centro respiratório.

E o médico ao fazê-lo sabe quais são as consequências.
A relação medico-doente é das coisas mais íntimas que existem e isso não deve ser quebrado. Quando queremos despenalizar e autorizar a eutanásia estamos a criar um modelo administrativo.

E isso é mais seguro para ambos?
Há a convicção que pode haver algum resvalar dos limites da permissão e da boa utilização dessa técnica. Os que defendem a eutanásia acham que sim, os que se opõem acham que não.

A ir para a frente a legalização da eutanásia o que seria mais difícil de resolver?
Temos constitucionalistas que dizem que a eutanásia é inconstitucional e temos constitucionalistas que dizem que não. Criar uma lei boa é sempre difícil. Aquilo que são, por exemplo, os relatórios parcelares que vão administrativizar o processo tornam este processo longo e muito castigador para o próprio doente — se me perguntar como se pode fazer de outra maneira, não sei. Mas o doente ter que reiterar a sua vontade de forma escrita por três vezes, e se houver alguma dúvida da parte do psiquiátrica ou psicólogo ele ter que [fazê-lo] uma quarta vez, induz sofrimento adicional. Acho que há uma dificuldade se esse for o caminho.

A outra questão é quem pode pedir. Na Bélgica já estamos no campo pediátrico: percebo que têm que ser situações de grande sofrimento, mas é difícil… Ou quando há outros interesses que possam estar em jogo da parte de familiares: uma coisa é pensar a bondade do modelo, outra é o que depois pode estar associado a isto. A lei não pode induzir sofrimento adicional. Como é que isso se consegue? Não sei.

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