Zimbabwe – a Raiz da Tensão

O fim do poder de Mugabe serve para sublimar as consciências ocidentais de quem nada fez para defender aquele povo.

Parece chocante, a hipocrisia de um regime como o do Zimbabwe com Mugabe. Não é menos impressionante a hipocrisia com que muitos ocidentais, que consideram ser de esquerda e ser “pela paz”, durante anos se calaram criminosamente perante um regime africano que torturava, matava organizadamente, pilhava o país e desgraçava os seus cidadãos.

Assim se descobre quem realmente é pela paz e pelos direitos humanos e quem os invoca para encobrir primarismos de preconceito ideológico.

Tornado independente em 1980, o Zimbabwe rapidamente foi controlado pela brutalidade de Mugabe. Desde então o regime foi dominado por um terror permanente.

Uma unidade especial de comandos treinados na Coreia do Norte (a Gukurahundi-Shona) foi transformada numa força de sistemática violência para aterrorizar, torturar e matar populações indefesas, suspeitas de não serem simpatizantes do regime.

Em 1987 cerca de entre 10 mil a 20 mil civis da tribo Ndebele foram chacinados. Com toda a razão, julgaram-se sérvios em Haia por dezenas de mortos, mas africanos que assassinaram em massa não são incomodados pela comunidade internacional. Nada mais coerente.

Em 2001 o governo de Mugabe apoiou grupos organizados para aterrorizar apoiantes do partido da oposição, o MDC, num período pré-eleitoral. Realizaram-se purgas generalizadas dos que eram suspeitos de simpatia com algo que não fosse o partido do governo. Funcionários públicos foram sumariamente despedidos e colocados no desemprego.

Num país que tinha uma economia pujante no momento da independência, Mugabe cometeu a proeza de o destroçar economicamente e de levar a sua população a passar fome. Assim, o Zimbabwe passou a receber apoios da caridade internacional, designadamente sob a forma de alimentos. Contudo, ajudas alimentares foram especialmente canalizadas para apoiantes do regime, enquanto algumas populações “desalinhadas” foram seletivamente privadas desse apoio e deixadas à mercê da fome.

Em momento de eleições presidenciais formaram-se milícias especializadas em perseguir e aterrorizar os não simpatizantes de Mugabe.

Um dia surgiu a brilhante ideia de formar uma milícia de 1000 jovens, bem como centros de treino para os preparar para uma tarefa de terror. Foi-lhes prometido que, caso Mugabe ganhasse as eleições, eles teriam emprego na polícia ou no Exército.

Nelson Mandela foi um dos poucos que tiveram a coerência e a coragem de, publicamente, se indignar, não hesitando em incitar o povo do Zimbabwe a “depor o ditador”.

Em eleições, Mugabe obteve oficialmente 56% dos votos, mas o clima de intimidação e o frágil nível de fiabilidade dos resultados eram óbvios. Numa urna em que se contaram cerca de 300 votantes apareceram depois resultados de cerca de 1000, predominantemente votando em Mugabe como seria de esperar.

Entretanto, Mugabe, obcecado em conservar o poder a todo o custo, tentou um golpe populista que consistiu em retirar aos ex-colonos britânicos, mas também aos cidadãos brancos de nacionalidade zimbabweana, as terras que estes possuíam, sem qualquer compensação por esse facto. Argumentava que assim corrigiria as distorções provenientes do período colonial. Poderia fazer esta reforma mas sem a conceber simplesmente como um roubo. Mas imensos ocidentais de pseudo-esquerda e pseudo-intelectuais deliraram com o brutal racismo de Mugabe.

Não admirando num regime racista como este, múltiplos brancos, de nacionalidade do próprio país, foram brutalmente assassinados pelas milícias apoiadas pelo regime.

Mugabe prometeu que aquelas terras seriam divididas em pequenos lotes e oferecidas para agricultura a centenas de milhares de famílias, mas só uma minoria as recebeu.

Prometeu também distribuir 50.000 explorações de dimensão comercial, mas só em 4800 os donos se maçaram em se deslocar para as propriedades. A produção de tabaco baixou 2 terços, a de trigo decresceu 80%. Em 2 anos a produção de cereais, em geral, caiu 67%.

Como se imagina, muitas das melhores unidades foram atribuídas não aos mais capazes e competentes mas aos amigos e apoiantes do regime. O descalabro agrícola e económico passou a ser generalizado.

A economia entrou em implosão. Mas a clique de apoio ao regime não parece ter passado miséria.

Os cidadãos do Zimbabwe não compreendiam por que motivo estavam, coletivamente e apesar da miséria, a pagar o custo de se manterem Forças Armadas do Zimbabwe no Congo durante anos. Talvez esses pobres cidadãos, que pagavam tal desvario, não soubessem que alguns políticos e generais do regime estavam a explorar recursos naturais do Congo e a acumular fortunas pessoais, designadamente com os diamantes que de lá obtinham.

Durante um período eleitoral, oponentes tiveram a sua cabeça mergulhada em baldes de água até se afogarem. Esta foi uma comunidade repleta de tortura, execuções extra-judiciais, ódio racista inspirado e dirigido por Mugabe, onde foram enterrados vivos seres humanos inocentes, onde foram abertos com baioneta os ventres de diversas mulheres grávidas.

Enfim, o Zimbabwe desenvolveu-se como uma coutada privada em que imperava o terror em favor de uma elite opressora.

Entretanto, agora que o mundo se satisfaz com o mediatismo da queda de Mugabe, o mundo parece ingenuamente acreditar que o horror de décadas foi obra de um único homem. O fim do poder de Mugabe serve para sublimar as consciências ocidentais de quem nada fez para defender aquele povo. E ninguém parece interessado em ver onde, neste preciso momento, se encontram muitos daqueles que assassinaram massivamente, que pilharam o país e que se apropriaram de riquezas naturais do Congo enquanto protegidos por tropas do Zimbabwe, pagas pelo suor de um povo em miséria. Mas se procurarem estes, as surpresas poderão ser substanciais.

 

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