“Apagão” no fisco força IGF a rever auditoria com dados errados

Inspector-geral atribui responsabilidades de “primeira linha” no controlo da informação financeira ao Banco de Portugal e ao próprio fisco. Números de auditoria de 2016 tinham por base valores incorrectos.

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Vítor Braz esteve no Parlamento a 4 de Julho a explicar o “apagão” Nuno Ferreira Santos

O “apagão” de dados do fisco relativos a 10.000 milhões de euros de transferências para offshores está a obrigar a Inspecção-geral de Finanças (IGF) a rever um relatório de 2016 que se centrava no desempenho da máquina fiscal no tratamento da informação financeira, mas que se limitou a assumir como certos os números que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) lhe apresentava e que hoje se consideram errados.

O documento em causa, agora a ser reformulado, não só não identificava qualquer erro nos números da AT pouco antes de o “apagão” ser descoberto internamente, como não esclareceu outras discrepâncias que já então colocariam interrogações sobre os valores ali apresentados relativamente aos fluxos de dinheiro transferidos a partir de Portugal para contas sediadas em paraísos fiscais.

O documento está em revisão, para que a AT exerça o contraditório sobre o projecto de relatório, que fora apresentado à tutela em 2016 mas não homologado pelo Ministério das Finanças. A IGF, em resposta a questões colocadas pelo PÚBLICO a 3 de Novembro sobre o controlo da AT, garantiu ontem que o relatório está em fase de contraditório, mas não revelou quando decidiu reabrir este dossier.

A questão é minuciosa e para a explicar é preciso recuar no tempo. Em Maio de 2014, a IGF realizou uma auditoria ao sistema de informação financeira e bancária da AT onde conclui, com base nos dados do fisco, que o valor das transferências para contas sediadas em paraísos fiscais ascendera a cerca de 17.565 milhões de euros no período de 2009 a 2012.

Dois anos mais tarde, em Setembro de 2016, pouco antes de o fisco detectar um “apagão” informático nas suas bases de dados de 2011 a 2014, a IGF termina uma “auditoria de conformidade ao desempenho da AT no tratamento da informação financeira”. Neste caso, a fiscalização incide sobre os anos de 2011 a 2014, assumindo-se que as transferências seriam na ordem dos 8200 milhões de euros.

O valor estaria errado, algo que só se saberia mais tarde. Mas há ali um número que salta à vista, porque apresenta um grande desvio em relação à auditoria anterior: se na primeira se assumia que as transferências do ano de 2011 ascendiam a 7962 milhões de euros, o valor referido na segunda auditoria era de 4672 milhões (3290 milhões de euros abaixo). E registava-se uma segunda diferença, já menos relevante, em relação ao ano de 2012, neste caso com um desvio inferior a 200 milhões.

Algo se passou entre uma auditoria e a outra, a partir de Maio de 2014. Mas nada se diz sobre estas discrepâncias na auditoria que a IGF viria a realizar, já em 2017, às anomalias que se detectaram na base de dados do fisco, na sequência do “apagão” de dados relativos a 10.000 milhões.

Variações

Questionado pelo PÚBLICO sobre o facto de a última auditoria não fazer qualquer referência aos números do relatório de 2014, o inspector-geral da IGF, Vítor Braz, começa por referir que a IGF “considera todas as informações específicas e relevantes para as auditorias que realiza, o que inclui a apreciação do trabalho e dos resultados de auditorias anteriores (internas ou externas)”. Mas essa auto-avaliação não passou para o papel: a auditoria omite os números anteriores.

O responsável máximo da IGF alega que esse primeiro trabalho versou sobre “a actividade de controlo desenvolvida pela inspecção tributária” e que tanto esses resultados, como os da auditoria de 2016, agora a ser reformulada, “não podem ser directa e automaticamente relacionadas com as evidências e os resultados obtidos na auditoria informática” deste ano. Mas, como a própria IGF admite nas respostas às 11 perguntas enviadas pelo PÚBLICO há um mês, a IGF está a reformular os resultados da sua auditoria de 2016 “atendendo à publicação de novos dados pela AT, face à detecção por esta entidade da falta de fiabilidade desses registos”.

Vítor Braz defende-se, argumentando que o controlo da informação financeira que lhe compete fazer é concretizado através de auditorias “a jusante”, a partir de informação de várias fontes e a partir daquela que está na base de dados do fisco. E insiste que o Banco de Portugal e o próprio fisco são as “entidades que em primeira linha são responsáveis” por garantir a “qualidade e fiabilidade” desses dados.

No relatório de Junho deste ano, a IGF não explica a razão de ter assumido que as transferências de 2009 a 2012 seriam de 17.564,7 milhões, quando hoje se considera que o total é mais baixo (não confundir com as discrepâncias do “apagão”, que fizeram com que se conhecesse um valor maior, com um volume desconhecido de 10.000 milhões).

Para a IGF, as diferenças – que só no caso do ano de 2011 são superiores a 3000 milhões de euros – têm várias explicações. Os números, argumenta, podem ser diferentes “se aferidos em 2015 ou em 2017, sem que tal traduza, necessariamente, qualquer problema do sistema de informação” da máquina tributária.

“Tal como se refere do relatório”, insiste, os dados não têm um carácter estático. Como exemplo, cita o facto de nem sempre os bancos ou outras instituições financeiras cumprirem correctamente a entrega das declarações, “sendo frequentes as situações de apresentação de declarações Modelo 38 fora de prazo ou de declarações de substituição (por erros ou omissões)” que fazem aumentar ou diminuir os valores. E alega: “Estas situações, de natureza recorrente, têm um impacto muito significativo na evolução da informação e inviabilizam, sob pena de erro técnico e de análise grosseiro, qualquer comparação directa e automática dos dados”.

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