Entrevista a Jean d'Ormesson: “Não sei se Deus existe, embora espere que sim”

Texto publicado no Ípsilon de 27 de Abril de 2007: Veio a Lisboa lançar o seu último livro. O título do próximo foi buscá-lo a um verso de Fernando Pessoa. Jean D’Ormesson fala sobre a morte, Deus, a eternidade. E, sempre, sobre si próprio.

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Carlos Lopes

Recebe-nos no terraço do hotel de cinco estrelas onde os anfitriões o hospedaram, durante os três dias de estadia em Lisboa. As televisões já o entrevistaram, com este panorama em fundo. Seguir-se-ão alguns jornais, antes de uma peregrinação pelos Jerónimos e Torre de Belém. 

A capital portuguesa constituiu porto de escala de varias viagens suas a Portugal: ão serviço da Unesco (de que foi alto funcionário, nos anos 50/60); para as filmagens de um dos seus livros; para uma visita ãos mosteiros de Alcobaça e da Batalha; e para “duas ou três” estadias no Algarve (nomeia Faro, Cabo de São Vicente, Albufeira, recorrendo as reminiscência do português que aprendeu na infância, fruto de uma estadia do pai, embaixador, no Rio de Janeiro).

Já não se deslocava cá, porem, há 20 anos. “Prometo voltar. Antes dos próximos 20 anos…”

O patrocínio da entrada de Margueritte Yourcenar na Academia – eis uma das insígnias que mais gosta de apontar no seu currículo, juntamente com a das contraditórias tendências genéticas de carácter político que nele se misturam. Tem sido referido em numerosos perfis o primeiro paragrafo do discurso de boas-vindas a escritora, a primeira mulher a entrar na Academia, depois de acaloradas discussões entre os 40 imortais: “‘Messieurs’, vou pronunciar uma palavra... espero que esta abóboda não caia sobre nos. Vou pronunciar uma palavra nunca ouvida nesta sala: ‘Madame’”.

Nas entrevistas, nas conferências, nunca deixa de falar das condições privilegiadas em que nasceu. Nem das suas tendências de direita.

Fê-lo mais uma vez agora em, Lisboa, onde veio presidir ão lançamento da tradução portuguesa do seu ultimo livro, “A Criação do Mundo”, pela Quetzal. Mas para acrescentar, como sempre, que, sendo de direita, acredita na igualdade entre os homens. E que, tendo nascido num berço de ouro (herdou o titulo de conde de d’Ormesson), não gastou o dinheiro em casinos, discotecas, mas em livros. E, pois, um escritor. E um intelectual. Condições que, vê-se a vista desarmada, lhe agradam profundamente.

Um minuto depois de começar a submeter-se ão ritual fotográfico de Carlos Lopes, já discute com este as perspectivas de Nicolas Sarkozy vencer as próximas eleições francesas. Não faz segredo desta preferência. Mas respondera com breves palavras a tentativa de conduzir a conversa nessa direcção. Entende – como explicou no dia anterior, na apresentação do seu livro no auditório (a abarrotar) do Instituto Franco-Português – que, quando esta no exterior, não deve referir-se a politica interna do seu pais. Postura mais própria de um chefe de Estado? Claro. “E por que não?”, da a entender, com o gosto assumido pela grandeza.

“A Criação do Mundo” é o seu segundo livro traduzido em português. O primeiro foi “A História do Judeu Errante”. Qual deles prefere?

Isso é o mesmo do que perguntar a uma mãe qual dos filhos prefere. Ama os a todos. Normalmente temos um fraco pelo último. Bom, há livros de que eu gosto menos. E há uns cinco ou seis que eu coloco no mesmo plano.

Quais?

“La Gloire de l’Empire” [prémio do romance da Academia Francesa]; “Au Plaisir de Dieu” [premio Balzac]; “A Historia do Judeu Errante”; “La Douane de Mer”; “C’etait Bien”; e “A Criacão do Mundo”. Foi uma escolha difícil.

É curioso não ter falado em “Le Rapport Gabriel”. Nele, juntamente com “A História do Judeu Errante” e com “A Criação do Mundo”, as personagens mais importantes – por vezes demasiado parecidas consigo, parece… – consideram-se ou funcionam como enviados de Deus.

Um autor escreve sempre a mesma obra.

Sim, mas neste caso, que arrogância!…

Sabe, recebi uma carta de uma senhora. Recebo muitas cartas de leitores. Uma media de 30 por dia. Desde há 10 anos. Todos os dias. Surpreendente. Sobretudo de Franca, mas começam a chegar também cartas da Alemanha, de Itália, da Bélgica, naturalmente, da Suíça, naturalmente. Essa senhora dizia-me: “Não se fala com Deus. Fala-se a Deus”.

O que é que lhe respondeu?

Já não sei bem. Mas certamente que esperava que, se Ele existe, me perdoara.

Deus está realmente presente de uma maneira muito forte, pelo menos nestes seus três livros. É uma obsessão? Tenho duas ou três obsessões. Penso que ser escritor e ter obsessões. Uma e sobre o meu pai. Falo muito do meu pai. Enquanto a família da minha mãe e de direita – francamente reaccionária, ardentemente católica e monárquica – o meu pai foi embaixador da Frente Popular, de Leon Blum. Chamavam- lhe, alias, “o marquês vermelho”. Não era muito “vermelho”. Talvez, um pouco “vermelho”. Mas era muito leal a Frente Popular.

Também temos um em Portugal [Fernando Mascarenhas, marquês de Fronteira e Alorna, com posições reiteradas à esquerda].

Ele não era socialista. Era aquilo a que podíamos chamar um cristão de esquerda. Bom, não muito cristão, mas de esquerda. Segunda obsessão: Veneza, que amei muito e sobre a qual escrevi muito. Terceira: Chateaubriand, de quem gosto muito como autor, sobretudo pelas suas contradições, que eu tenho evidentemente, também. Tenho duas outras obsessões, que são a mesma: o tempo e Deus. Ao falarmos de Deus, devo prevenir que sou agnóstico.

Isto é, não sabe se existe ou não?

Sim, agnóstico não e o mesmo que ateu. Não sei. Tive amigos que o sabiam. Claudel (Paul) e Frossard (Andre, não e muito conhecido, era um escritor da Academia, muito catolico) sabiam. Quando elegemos [para a Academia Francesa] um cardeal, Frossard inclinou-se para mim e segredou-me: “Espero ao menos que este acredite em Deus”...

Como é que passa tanto tempo a escrever sobre uma entidade de cuja existência não tem sequer a certeza?

A chave está aó. Respondo-lhe citando um rabino: “O que há de mais importante é Deus. Exista ou não exista”. Magnífica formula.

Voltando aos tais três livros. O senhor inventa neles personagens que são uma espécie de mensageiros de Deus. Só lhe falta falar directamente com Ele. Será este o tema do próximo livro? Ou vai assumir-se como Deus e falar aos homens?

Não sei se ousarei ir até aí. Escrevi “A Criação do Mundo” porque os meus amigos me diziam: “Ocupaste-te muito de Deus. Diz-nos, de uma vez por todas, se acreditas em Deus, se acreditas que há alguma coisa para alem da morte e se acreditas que há a vida eterna?” O livro acaba por não responder a estas três questões.

Porque não sabe?

Porque não sei. No fundo, penso como Woody Allen, quando lhe perguntaram a que religião pertencia: “Fui educado na religião hebraica, mas converti-me ao narcisismo...” Outra formula ainda: “Não acredito na vida eterna. Mas, por segurança, vou levar uma muda de roupa...” Falando mais seriamente. Gosto da fórmula de um pai da Igreja crista: “A minha fé e a minha fórmula da esperança”. Isto e, não estou em condições de garantir que Deus exista, a única possibilidade e esperar que isso aconteça.

Para conferir um sentido à vida?

Sabe o que dizia Dostoievski? “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Seria terrível, se Deus não existisse. Sou tido por um escritor da felicidade. Mas este mundo e sinistro. Olhe para as notícias do seu jornal de hoje. Seja qual for o regime, são sempre os fortes que oprimem os fracos. Sob a direita ou sob a esquerda, há sempre pessoas que triunfam e pessoas que não triunfam; pessoas infelizes, para quem morrer e um alivio; pessoas cuja vida e apenas trabalhar ou, pior, que nunca puderam trabalhar ou que estão sempre doentes. Muitos escritores e homens políticos apresentam-se como tendo nascido infelizes. Eu não. Tive muita sorte, pude estudar, trabalhar. Mas isso não impede que outros sejam infelizes num mundo atroz. Se ainda por cima não houver mais nada...

Este mundo é atroz e o homem continua a procurar encontrar Deus.

Este livro não é religioso. Mas suponhamos que Deus existe. Nesse caso, Ele tem de estar escondido.

Porquê?

Haveria duas catástrofes: para a ciência e para a religião. Se se soubesse com segurança que existe, seria uma catástrofe para a ciência; se se soubesse com segurança que não existe, seria uma catástrofe para as religiões: os rabinos e o islão não teriam razão de ser; o papado tinha que se dissolver. O que e interessante e, precisamente, não termos a certeza. Há uma formula muito bela de Laplace. A volta de 1800 ele construiu uma espécie de cosmogonia, que apresentou a Napoleão. Disse-lhe este: “Monsieur Laplace, o senhor não reserva para Deus nem o mais pequeno papel no mundo”. Laplace respondeu: “Reservo sim. Mas podemos passar adiante”.

Essa incerteza em relação ao futuro coloca-se-lhe de uma forma mais dramática com a progressão do tempo, agora que vai nos 81 anos?

Não. A ideia de estar morto parece-me bastante satisfatória. Sou muito preguiçoso. Trabalhei muito. Escrevi 30 livros. Dirigi um jornal – foi terrível e apaixonante, escrevia todos os dias. Morrer deve ser repousante, embora a passagem deva ser muito difícil.

Um grande poeta português, já falecido, Alexandre O´Neill, disse-me uma vez numa entrevista que gostava de ter na campa o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Alexandre O’Neill um dos homens do seu tempo que menos dormiu. Bem merecia isto”

Exactamente! Como já disse, sou céptico. Acho que a vida não vale grande coisa. Mas se podemos dizer que a vida não vale nada, devemos também dizer que nada vale a vida.

Há cientistas que dizem que no fim deste século a vida como a conhecemos terá desaparecido. Caminhamos nesse sentido?

Quando lhe disserem isso, não acredite.

E no entanto os sinais vão nesse sentido.

Sim, há sinais. E a vida desaparecera. Mas vejamos: sabe em que e que eu acredito? Na ciência. Não sei se Deus existe, embora espere que sim. Mas acredito na ciência. Devo-lhe tudo. Para já, o estar aqui. Com esta idade, há um seculo, já teria morrido. Costumo contar esta história: a minha avó partiu o colo do fémur e morreu; a minha mãe, partiu o colo do fémur, foi tratada e viveu mais 20 anos e muito bem; eu, nem sequer ainda parti o colo do fémur...

Tem, portanto, pelo menos mais 30 anos à frente...

E a ciência. Mas da ciência, que faz tantos progressos, não são os falhanços que devemos temer, mas, precisamente, os avanços. Se quisermos resumir o seculo XX, que eu vivi, diremos: foi o seculo mais abominável da Historia. Existiu sempre o mal, mas nunca atingiu esta dimensão: 300 milhões de mortos por actos de violência, a fome, a crise económica, a sida. E no entanto foi um seculo admirável. Por causa da ciência. Numa primeira parte a física, a matemática – Einstein, Planck, Heisenberg – ainda foram mais importantes do que Proust ou Joyce. Pois bem, esta ciência extraordinária terminou na bomba atómica. Na segunda parte do século, reinou a biologia molecular. Com que resultados? Clonagem, manipulação genética, possibilidade de mudar inteiramente o cérebro, o que me parece muito inquietante. Deste modo, a ciência é capaz de tudo, menos de responder as questões fundamentais. Podemos remontar a 12 ou 15 milhões de anos, mas alguns segundos antes do big-bang as leis não funcionam (não se aplicam?). As pessoas de direita dizem...

... desculpe a interrupção: ouvi ontem a sua conferência no Franco-Português e li várias entrevistas. Apresenta-se constantemente como um homem da direita. Mas quem defende a liberdade e sobretudo a igualdade ...

Creio fundamentalmente na igualdade. Quando [no período de perguntas do publico] aquele senhor falou em elites... Não acredito muito nelas. Nem nos valores.

Aí está. Isso é muito ...

...é muito a esquerda. Sei onde quer chegar. O avô do meu bisavô votou, na Convenção Nacional da Revolução, a morte do rei. Esse meu antepassado não pertencia ao ramo familiar liberal do meu pai, mas ao ramo reaccionário da minha mãe. Ele posicionava-se bem à esquerda de Robespierre. Era comunista...

... “avant la lêttre”...

Era mesmo anarquista.

Mas esses dados biográficos fundamentam mais a minha dúvida: porque é que faz tanta questão em considerar-se de direita se tem um tão grande fascínio por valores de esquerda?

No fundo, poderia considerar-me, sem problema nenhum, um social-democrata. O meu pai esteve na Alemanha entre 1925 e 1933. Quando chegou a Alemanha, Hitler estava na prisão; quando saiu da Alemanha, Hitler era Chanceler. Salvou muitos judeus alemães. No final, em 1933, todas as manhas, ao pequeno-almoço, recebíamos a fotografia do meu pai com os olhos furados. Fui educado, portanto, no ódio a Hitler. E o meu pai, que era um pacifista, ate pro-alemão, acabou por atacar Hitler. Durante a guerra, todos nos na família eramos por Estaline. No pós-guerra compreendi muito depressa o que Estaline significava. Era aluno da Escola Superior Normal [onde tradicionalmente são preparadas as elites dirigentes em Franca], estava num ambiente de esquerda...

...de elite...

...e tornei-me muito anti-estalinista. Passei a ser considerado de direita por isso.

Há muito tempo que uma pessoa pode ser anti-estalinista e de esquerda ao mesmo tempo.

Todos os meus amigos da esquerda se tornaram anti-estalinistas. Mas todos foram estalinistas, antes. Eu, logo muito cedo, passei a ser anti-estalinista.

Estaline é o passado. Hoje vivemos num mundo em que há desigualdades, ditaduras, migrações, a globalização tal qual é praticada. O que o faz continuar a ser de direita?

As reformas serão feitas tanto pela esquerda como pela direita. Constato, em Franca, que a Argélia foi libertada por De Gaulle. A esquerda foi incapaz de o fazer.

Foi o seu pecado.

Não foi o primeiro. O sistema colectivista não tem futuro.

A esquerda moderna não é colectivista.

Diria de bom grado que já não há diferenças entre a direita e a esquerda, mas, como sabe, a esquerda diz logo, ao ouvir isso: ‘os que dizem que não há diferenças entre a direita e a esquerda e porque são de direita’...

Vota portanto agora, nas presidenciais, num candidato da direita?

Seguramente. Mas como disse na conferência, não quero falar em assuntos internos do meu pais, quando me encontro no estrangeiro. Entre nós, porém, posso dizer-lhe...

...entre nós, não. É para publicar.

Votarei em Sarkozy. E o único capaz de... Bayrou, sabe, e muito... Bom, aborrece-me falar de política interna francesa no estrangeiro.

Vota Sarkozy, apesar de ele mostrar que não compreendeu verdadeiramente o fenómeno da identidade, no que respeita aos filhos dos imigrantes?

Não só aceito como sou favorável à imigração. Acho que ele vai compreender. Quanto a Bayrou, é muito simpático. Mas não vejo como e que ele governa...

Quais as diferenças fundamentais entre o mundo em que nasceu, em 1925, e o mundo de hoje?

A posição da direita clássica e dizer que antigamente tudo era bom e agora tudo e mau. Não concordo. Talleron dizia que os que não tinham vivido antes da Revolução Francesa não sabiam o que era a doçura da vida; Platão dizia que os jovens estavam perdidos, ja não sabiam nada. A verdade e que as coisas andam muito depressa. Uma vez disse, num congresso da Unesco, em Moscovo, que estavam ali reunidos mais filósofos do que aqueles que a Humanidade tinha conhecido ate então. As coisas mudam de uma forma considerável. Mas no fundo nada muda nunca. E verdade que o mundo hoje e completamente diferente. Mas quando se diz que o mundo nunca foi tão duro como agora, eu pergunto: e durante a Guerra dos Cem Anos? E durante a Guerra dos Trinta? E durante a Grande Peste, que matou um por cada dois habitantes da Europa, em 1250? Sempre o futuro foi difícil, sempre o passado pareceu radioso. O mundo é um misto de coisas boas e más. É sinistro e belo.

Disse que os livros mudaram o mundo. É por isso que escreve?

Mudaram. E no entanto são incrivelmente recentes. O mundo tem muitos milhões de anos. O homem, dois ou três milhões. A escrita tem só cinco mil anos. Data de uns 600 anos antes de Homero. Ele, alias, praticamente não escreveu. A sua obra era repetida oralmente. O livro, tal como o conhecemos, data de Gutenberg, isto e, tem [pouco mais de] 500 anos. Não sou pessimista. Acho que o livro vai continuar a existir, embora tenha perdido importância. Foi substituído pela imagem. Sou muito pessimista quanto aos jornais. Não tenho sequer a certeza que ainda haja jornais dentro de 50 anos.

Por que é que diz isso?

Quando recebo o jornal já conheço praticamente todas as noticias. Ouvia-as na rádio, de manhã, e vi-as no dia anterior, à noite, na televisão. Veja o fenómeno das assinaturas [muito importante em Franca]: quando fui director do “Le Figaro” e as vendas começaram a descer, achávamos que os assinantes não iam deixar de o ser. Mas deixam: morrem, e os filhos não renovam. Outro dia encontrei o director de um jornal gratuito e disse-lhe estar convencido do desaparecimento dos jornais dentro de 50 anos. “50 anos? Dou-lhe dez.” Penso, apesar de tudo, que ele é demasiado pessimista.

O desaparecimento do livro, a morte do jornal, arrastarão o fim da cultura?

Não, claro que não. Platão também considerava catastróficas as consequências trazidas pela chegada da escrita porque ia fazer com que as pessoas deixassem de conhecer de cor as grandes obras. O mesmo se diz agora, por causa da Internet. A cultura não muda. Muda o suporte. A imaginação, a inteligência não mudam, tomam formas novas. Os jovens de hoje sabem menos ortografia, sabem menos fazer contas, já não sabem francês, já não conhecem história. Mas sabem muitas outras coisas. Uma criança de sete anos hoje sabe mais coisas do que Aristóteles. Este dizia que o mundo era infinito, a criança sabe que e finito; Aristóteles pensava que o mundo era eterno, a criança sabe que houve uma historia do universo. Sabe mais, portanto.

Certamente está a ironizar. Aristóteles, contudo, sabia pensar.

Pois bem: o pensamento não vai desaparecer, vai aprender novas formas. Já aceitámos a ideia de que descendemos do primata. Falta-nos aceitar a ideia de que o que temos pela frente e o mesmo que temos atras de nós. Isto e, não pensemos que dentro de dois ou três milhões de anos os nossos descendentes serão semelhantes a nós. Serão muitíssimo diferentes. Não sei o que, mas serão outra coisa. A mesma diferenca que ha entre o primata e nos, sera a que vai haver entre nos e os que vão vir depois. Serão mais inteligentes? Não sei.

E o fim do fim?

Haverá um fim.

E esse será o momento em que Deus aparece. Ou não aparece...

Aparece ou não aparece. Mas: você vai morrer...

...muito obrigado...

Depois de mim... Não duvidemos de que o homem vai desaparecer; o universo vai desaparecer. O sol desaparecerá, dentro de cinco mil milhões de anos; o universo desaparecerá dentro de um milhão de milhões de anos. Nesse momento o que haverá? Deus. Ou nada. Mas se não houver nada, os seus pais, os seus avos viverão ainda, porque você pensa ainda neles. Quando o mundo e o homem desaparecerem, será que ninguém guardara de ninguém a memória?

Se não existir nada, como é que pode existir ainda a memória de alguém em alguém ou nalgum lado?

Pois eu não posso acreditar. Acho que há-de existir ainda qualquer coisa que se lembrara da aventura humana. A verdade e que Deus jogou evidentemente um grande papel junto do homem. Mas não acredito que o homem não tenha jogado também um papel junto de Deus. E que Ele não tenha sido transformado pela aventura humana.

Um filósofo português que ensina em Oxford [Hermínio Martins], numa entrevista [Pública de 11.2], disse acreditar que há “uma comunidade de pessoas, vivas, mortas, futuras, uma espécie de sombra cósmica da nossa espécie, que pode ter vários estatutos de existência”.

Fascinante. E o que e que ele diz do futuro do homem?

Preocupa-o a transformação do homem, em várias direcções. Talvez em outros modos de existência, não biológica.

Tudo o que a ciência puder fazer, falo-á.

É inquietante.

Inquietante e magnífico, além disso.

Quem são os seus heróis?

Politicamente: Ghandi, Churchil, De Gaule. Intelectualmente: Proust, Hemingway, James Joyce.

E alguém que ainda não tenha morrido?

Oh!, quanto aos vivos, contento-me comigo próprio...

Resposta muito à Jean d’Ormesson... Veio a Portugal assinalar a tradução do seu último livro. A língua francesa, falada em todo o mundo culto, no passado, está em declínio.

Isso e evidente no estrangeiro e preocupa enormemente os franceses e em particular a Academia. Em cada sessão vertemos lagrimas sobre esse declínio. E possível datá-lo.

Quando foi?

Francois I promulga um édito em 1539, o edito de Villers-Cotterets que torna o francês obrigatório nos actos públicos (que antes eram em latim). A língua francesa fazem-na depois dois homens: Pascal, na prosa; Corneille na poesia. O triunfo dá-se em 1648, quando os Tratados de Vestefalia são escritos em língua francesa. Durante três seculos, o francês reina – Frederico II, em Berlim, fala francês; Catarina a Grande, da Rússia, fala francês. Posso dar-lhe o ano, o dia, a hora em que o declínio começou.

Faça favor.

10 de Maio de 1940, as cinco horas da manha.

O que aconteceu a essa hora?

Hitler ataca a Bélgica, a Holanda e a Franca e a Franca desmorona-se em 11 dias. A língua, o poderio francês são feridos de morte naquele dia. Sou daqueles que pensam que a língua e a cultura se apoiam no comercio, na riqueza, a influencia, talvez no poder militar. Veja a Grécia, Atenas era a primeira potencia marítima do seu tempo. A Grécia declina quando Roma emerge, mais forte, tornando o latim a língua dominante. O inglês desenvolve-se porque a América e a primeira potência do mundo; o chinês vai subir, porque a China vai estar no centro do mundo. A tarefa, genial, de De Gaulle foi fazer com que a França, que havia sido vencida, ficasse no campo dos vencedores. Mas não foi suficiente. Há três grandes períodos: o classicismo, o romantismo, e, em Franca, a literatura de entre as duas guerras, que e magnifica: Proust, Valery, Claudel, Gide, Aragon, Jules Romain, Mauriac. Hoje, o número de grandes escritores franceses e mais pequeno. Digamos as coisas como elas são: entre as duas guerras, os franceses eram traduzidos na América; hoje, são os americanos que são traduzidos em Franca. “Helas, c’est comme ça!”

Diga-me o nome de um grande escritor francês de hoje?

Os últimos dois grandes escritores franceses foram Aragon, que eu admirei muito, e Yourcenar.

Escritores estrangeiros?

Japoneses, como Mishima, entre outros; sul-americanos como Borges, Cortazar, Vargas Llosa, Garcia Marquez; também africanos, talvez, mais tarde. A língua não se salva com comités, com congressos, mas com obras. Faltam-nos grandes escritores, filmes, cancões, desportistas. No fundo, há uma crise moral em Franca. A França saiu um pouco da Historia. Sou muito europeu. O não a Europa foi fatal para a França.

Não conhece escritores portugueses?

Tenho veneração, como toda a gente, por Pessoa. Quando escrevi uma antologia da poesia francesa fui buscar um verso a Apollinnaire: “Et toi, mon cõeur. porquoi bats-tu?” Ora bem, o titulo do meu próximo livro, uma recolha dos meus livros, fui busca-lo a um verso de Pessoa: “A literatura e a melhor prova de que a vida não chega”. O meu livro vai intitular-se: “La vie ne suffit pas”.

O que é que gostava de ter feito que não fez?

Digo-o muitas vezes: tenho pena de não ter escrito a “Ilíada” e a “Odisseia”.

Esses foram já apanhados [por Homero]. Um livro que ande à procura de escrever?

Por que e que se escreve sempre mais um livro? Porque achamos que aquele que vamos escrever será o mais belo, o definitivo. E quando ele parece, achamos que ainda não e suficiente. E o próximo.

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