Ninguém é perfeito, somos todos perfectíveis

Andamos por aí a ressacar por aceitação. Sedentos de compaixão, formatamo-nos de forma a conseguir fazer parte desta formação de gente que só quer ser alguém que não eles próprios

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Ümit Bulut/Unsplash

“Perfeito”, do latim perfectus, significa “completo”, “acabado”. Ora bem, ao contrário dos bens materiais, esses sim acabados e, eventualmente, com algum defeito, nós viemos ao mundo com particularidades e para nos irmos aperfeiçoando. Felizmente, estamos tudo menos acabados. Muitas vezes, nem a própria morte põe fim a este caminho que tem como destino a melhor versão de nós próprios. Então, se todos somos estes seres com a capacidade e o poder de se auto-transformar, como pode alguém ser ninguém?

“Tens de ser alguém na vida” — era este o mote. Consoante o meio social em que se estava inserido, “ser alguém” tinha diferentes definições. Por norma, andava sempre à volta do ser rico, famoso, notável ou poderoso. As expectativas eram mais do que exacerbadas e, na maioria dos casos, reflectiam os desejos não alcançados pelos pais. Sem o escudo da experiência para nos proteger, foi essa frustração, muitas vezes, o motor do nosso condicionamento.

Sermos nós próprios parece não ser suficiente. Paira no ar a sensação de que “ser eu” é o degrau que antecede o “ser alguém”. Esta inferiorização da nossa originalidade castra toda a nossa essência. Isto em nada engrandece a nossa auto-estima. Muito pelo contrário, torna-nos buscadores de aprovação. Andamos por aí a ressacar por aceitação. Sedentos de compaixão, formatamo-nos de forma a conseguir fazer parte desta formação de gente que só quer ser alguém que não eles próprios. Este tétris social é muito semelhante ao jogo: quando finalmente encaixamos, desaparecemos. Mas, felizmente, estamos sempre a tempo de nos reencontrarmos. Caso não estejamos satisfeitos com quem somos é porque não estamos a viver a nossa verdade. Quando assim é, resta-nos usar a energia que a vida nos deu e pô-la ao serviço de nós mesmos.

A verdade é esta, fomos formatados para ser algo que já o éramos: alguém.

Todos fazemos parte de um grande puzzle. E, como em qualquer puzzle, todas as peças são fundamentais. Seria impossível completar a imagem da caixa se deixássemos “alguém” de fora. Não importa a sua forma, muito menos o seu conteúdo. Importa sim o que ela é, uma peça, uma parte do todo. Apesar de cada uma ter o seu papel, todas são importantes. E ai da peça que tentar encaixar numa posição que não a sua. Além de estragar a imagem final, ainda se arrisca a ter de se (es)forçar para ocupar o seu lugar.

“Sê tu próprio”, repetiu-me tantas vezes a minha mãe. Momentos de insegurança e incerteza levavam-me a crer que tinha de desempenhar um papel que não era meu. Em vez de um conselho simplório, eu queria era um guião. Era difícil enxergar toda a sabedoria que fluía naquelas palavras. Parecia demasiado simples para ser “só” assim. Achamos que a vida tem um manual de instruções — e tem mesmo, mas cada um tem a sua versão.

Após ter subido a palco em várias ocasiões e ter participado vezes sem conta no baile de máscaras, hoje não me restam dúvidas: cada um de nós é o melhor a fazer de si próprio. E esta não é a melhor nem a pior solução, é a única.

Ninguém é “zé ninguém”. Sinto, profundamente, que todos somos um “zé alguém”. Cada um de nós é alguém que importa a alguém, mais que não seja a si próprio. Somos seres excepcionais e irrepetíveis. Todos somos alguém capaz de amar, contemplar a natureza e ter ideias. A criatividade galopa no nosso ADN enquanto a imaginação dá coices à realidade cinzenta com que nos querem encobrir o coração. A mensagem que transportamos é inigualável e imprescindível. Todos temos a capacidade de aprender e ensinar, inspirar e reflectir, observar e absorver.

Como já dizia o saudoso professor Agostinho da Silva, “faça o favor de cumprir-se”. Todos, sem excepção, viemos cá para ser alguém, alguém capaz de cumprir o seu papel, o seu divino propósito. Sendo assim, o que nos falta afinal? Falta perceber que não nos falta nada, rigorosamente nada.

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