O novo normal

Estamos, outra vez, no limiar de um admirável mundo novo, em viagem para o universo do ciberespaço.

“Antes que fiquem demasiado deslumbrados com gadgets fantásticos e vídeos hipnotizantes, deixem que vos lembre que informação não é conhecimento, conhecimento não é sabedoria e sabedoria não é clarividência. Cada um deles advém do outro e precisamos de todos”
Arthur C. Clarke

Na grande tradição dos romances distópicos — Nós, de Yvegeny Zamyatin (1924), O admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932), 1984, de George Orwell (1948), e Fahreneit 451 (1953) de Ray Bradbury — estamos, de novo, no limiar de uma “era misteriosa”, aquela que relaciona humanidade e tecnologia, esperança e muitos perigos. Todos eles falam de condicionamento e manipulação, de vigilância e polícia do pensamento e, no caso de Orwell, de novilíngua.

De facto, estamos, outra vez, no limiar de um admirável mundo novo, em viagem para o universo do ciberespaço. As grandes tendências deste admirável mundo novo seguem a fórmula dos “três D”: digitalização, desmaterialização e desintermediação. Desde logo, a intermediação comercial convencional entre produtor e consumidor é posta em causa e em muitas atividades económicas essa relação é diretamente assumida pelos “pares”, nos termos da chamada economia colaborativa. As mais-valias da anterior relação comercial são, agora, “distribuídas pelos pares” e pelo novo intermediário digital.

Os nossos dados pessoais recolhidos nos dispositivos fixos e móveis são objeto de uma filtragem e tratamento em grandes centros de dados por intermédio de protocolos matemáticos chamados algoritmos. O resultado final desse processamento apresenta-se sob a forma de perfis e padrões de comportamento personalizados que são depois vendidos a empresas de marketing e publicidade ou diretamente às grandes empresas de distribuição e retalho. Estes mercados de duas faces, gratuitos a montante e pagos a jusante, são designados de “mercados biface” e são eles que proporcionam as receitas gigantescas às grandes plataformas digitais como a Google e o Facebook.

À “internet dos humanos” junta-se a “internet das coisas” e a sua “smartificação”. Todos os objetos poderão, doravante, por meio de sensores, estar ligados a um dispositivo móvel e debitar continuamente toda a informação pré-cozinhada, por exemplo, através de um assistente digital inteligente. As máquinas inteligentes, o deep learning e a robotização libertam-nos de uma parte importante das nossas tarefas e aliviam o nosso “disco rígido” para outras aplicações. Seremos, cada vez mais, um “homem aumentado” por via de inúmeros dispositivos que nos permitem o acesso à realidade aumentada e virtual. Este “acréscimo de humanidade” é tornado possível por via de novos interfaces e implantes entre o cérebro e os dispositivos que tanto podem ser o relógio e os óculos como os nano-dispositivos implantados no cérebro.

Finalmente, a ideologia do transumanismo e da pós-humanidade. Não se trata apenas das terapias genéticas e do aumento da longevidade. O mixing entre o homem aumentado e a máquina inteligente pode originar uma nova “espécie humana”. Tal aproximação irá progressivamente conduzir-nos ao chamado “ponto de singularidade”, talvez em 2050 (Ray Kurzweil, Google). Nessa altura será ultrapassado um limiar perigoso, a máquina inteligente terá adquirido a “consciência da sua autonomia”.

Aqui chegados, com algoritmos e perfis de comportamento, a sensorização dos objetos, os assistentes digitais inteligentes, as máquinas automáticas e inteligentes, a realidade aumentada e virtual e a bandeira do transumanismo, estamos, finalmente, num “novo normal”. A vida ao quotidiano neste “novo normal” pode ser extraordinariamente enfadonha e fatigante. Senão vejamos. Em casa é a “internet das coisas” que está ao comando. As compras on-demand serão uma prática corrente. Os espaços de co-working passarão a fazer parte da nossa atividade profissional. Os serviços de aluguer nas start up de renting serão, igualmente, uma prática corrente. A economia crowd, do crowd funding de pequenos negócios, de crowd sourcing e crowd learning para as áreas de formação e ensino, será um instrumento fundamental de uso corrente em muitos formatos de economia colaborativa. Os serviços free lancer em open source via Skype entrarão pela noite adentro por causa dos fusos horários.

Uma nota final quanto ao mix de rendimentos proporcionado por esta vida pluriactiva ou “uberizada”. O mix contemplará um rendimento salarial a tempo parcial por conta de outrem, um rendimento variável de trabalho independente on-demand, um rendimento em espécie (voucher) pelo trabalho colaborativo e voluntário na comunidade local, um rendimento igualmente variável pelo aluguer e/ou venda de bens de ocasião e, quem sabe, um “rendimento básico universal” no próximo futuro. Uma tarefa ciclópica, sem dúvida.

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