O feminismo é para toda a gente

Combater o assédio e toda a violência sexual contra mulheres implica desconstruir um sistema de opressões intercruzadas que vão do machismo sistémico ao racismo estrutural. São vários os corpos estigmatizados neste processo, de várias formas. As raízes e as consequências do assédio são densas e complexas. Olhá-lo de frente é também reconstruir sociedades mais justas.

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Está-se a tentar recuperar o tempo perdido. Os anos, as décadas, em que o assédio e o abuso sexual de mulheres foram relegados para segundo plano, aligeirados, ignorados. “Erguemos vidas inteiras, famílias e comunidades em torno do buraco deixado pela ausência desta conversa”, sintetizou recentemente a escritora, jornalista e activista feminista inglesa Laurie Penny. Agora a discussão está em cima da mesa. Em Outubro, o novelo começou a desenrolar-se a toda a velocidade em Hollywood com o caso do produtor de cinema Harvey Weinstein. Seguiram-se denúncias em catadupa no mundo da televisão e do cinema, na música, nas artes visuais, no Parlamento Europeu, na política. Os meios de comunicação começaram a olhar com mais atenção para a realidade dos seus próprios países.

Contudo, a discussão dominante continua a ser demasiado homogénea. Está centrada, sobretudo, nas experiências de mulheres brancas, que correspondem a certos padrões de beleza hegemónicos, que são de classe média-alta e cisgénero (quando a identidade de género de uma pessoa coincide com o sexo e género que lhe foram atribuídos à nascença). Não é, obviamente, uma questão de desvalorizar ou secundarizar a violência de que são alvo, mas sim de ir além de uma visão parcial sobre uma realidade com várias nuances. “Muitas vezes estas questões do assédio e do abuso sexual são vistas de forma linear, com homens-tipo e mulheres-tipo. Existe muita variabilidade dentro do assédio”, afirma Conceição Nogueira, docente da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto e doutorada em Psicologia Social, na área dos Estudos de Género. “Trata-se de dinâmicas sociais de género e de poder complexas. Isto perpassa todas as classes sociais, todas as profissões, todos os corpos, todas as idades. Existe aqui um mundo.”

Um mundo onde a hierarquia social que determina quem se deve ouvir e em quem se deve acreditar vai também além do género. “Temos de pensar nisto de uma forma muito mais interseccional, senão a discussão avança pouco e quase não saímos da caricatura”, declara João Manuel de Oliveira, investigador em Estudos de Género no ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa e professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil. Reflectir sobre a violência de género a partir de uma “perspectiva binária” é “muito útil para perceber como determinadas sociedades acabam por recorrer a esse sistema para impor as suas normas, para reproduzir determinadas relações sociais”. Mas o mundo não vive assim — Portugal incluído. “Estas categorias sociais de género são intersectadas por outras, como a raça, a classe, a nacionalidade, a religião. Isso tudo influencia”, esclarece o investigador.

O assédio — na rua, nos espaços públicos, no trabalho, na Internet — é simultaneamente um sintoma e um pilar estrutural das sociedades machistas, racistas, transfóbicas e androcêntricas em que vivemos. É uma cultura sistémica e profundamente enraizada; não é algo característico ou exclusivo de determinados contextos mediáticos e mediatizados como Hollywood. Para minorar e erradicar o assédio e o abuso sexual é preciso começar por desconstruir todo um sistema de opressões intercruzadas que os sustentam e perpetuam. “O assédio tem raízes muito densas. Se pensares de onde é que ele vem, as entidades que são submetidas a isso, como é feito, em que moldes, quais são as consequências. É muito complexo”, reflecte Odete C. Ferreira, DJ e performer de 22 anos para quem o assédio é “uma parte muito grande” e “muito horrível” da sua vida.

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Machismo e racismo

É preciso uma corrida de fundo, em várias frentes. Centremo-nos em Portugal. “Aqui o discurso é mais centrado na mulher branca devido ao lugar que a mulher negra ocupa na sociedade portuguesa”, diz Ana Fernandes, 38 anos, activista e co-fundadora da Roda das Pretas, colectivo feminista e anti-racista com base em Lisboa. “Nós estamos sub-representadas nas estruturas de poder, sejam elas políticas, financeiras, culturais, académicas, e estamos sobrerrepresentadas em sectores mais desqualificados e desvalorizados, como o trabalho doméstico e a limpeza, que só por si remetem a mulher negra para uma figura servil”, nota Ana. “Além de invisível na sociedade, há muito esta ideia de mulher submissa. Isso tudo dificulta fazer ouvir a nossa voz.”

Enquanto mulher negra, Ana Fernandes não consegue separar o machismo do racismo. Uma “dupla violência” que continua a ser alimentada e normalizada por uma biografia nacional assente no mito do ‘bom colonizador’, num imaginário colectivo em que se nega a desumanização, o racismo, o genocídio da história colonial portuguesa. Em que se nega, inclusive, a violência sexual contra as mulheres, distorcida e emoldurada como romances além-mar. “Esse capítulo do colonialismo é posto ainda mais debaixo da almofada”, lembra a activista. “Há uma narrativa, mesmo nos manuais escolares, que apresenta o nosso corpo ao mesmo tempo como uma propriedade e como algo exótico e hipersexualizado.” Como diz a artista e escritora portuguesa Grada Kilomba no seu livro Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (2008), “o racismo constrói a condição da mulher negra como um duplo: a ‘serva obediente e assexual’ e a ‘puta primitiva sexualizada’”. Estas construções herdadas do colonialismo contribuem também para a “normalização da violência contra as mulheres negras”, assinala Ana Fernandes. “Quando eu sou assediada, espera-se de mim um determinado comportamento, um facilitismo.”

Geanine Escobar concorda. “Os corpos das mulheres negras foram utilizados durante mais de 500 anos para gerar escravos. Corpos vendáveis, alugáveis, que serviam obrigatoriamente ao sexo. Esse estigma resiste ainda hoje: quando uma mulher negra diz não [a avanços sexuais] e justifica, ou simplesmente ignora, muitos homens sentem-se agredidos e ficam agressivos.” Geanine, 27 anos, veio do Brasil para Portugal tirar o doutoramento em Estudos Culturais pelas universidades de Aveiro e do Minho. Em 2016 co-criou o Colectivo Zanele Muholi de Lésbicas e Bissexuais Negras. Para ela, desconstruir a questão do assédio sexual passou também pelo processo de se assumir e empoderar enquanto mulher negra e lésbica. “Vivi durante muito tempo naquilo que se chama ‘heterossexualidade compulsória’, ou seja, a tentativa de me encaixar na heteronormatividade e dar continuidade a relacionamentos hetero por causa da pressão da sociedade, da família, do trabalho.” Aos 20 anos, quando conseguiu desenvencilhar-se de uma relação, percebeu que “tinha estado com aquele homem também para tentar evitar os assédios”.

Não era solução, concluiu. Depois de começar a assumir relações lésbicas, as situações de assédio continuaram “extremamente violentas, mas em dose dupla” — contra ela e contra a namorada. “Muitas pessoas dizem que as relações lésbicas são mais bem aceites do que as relações entre homens gays, mas não são.” Fetichização não é aceitação. Geanine e as amigas ouvem recorrentemente pedidos de sexo a três dirigidos por desconhecidos. Na rua, nos transportes públicos, em cafés. “Em qualquer lado.” E há homens que não se ficam por aí. “Mesmo quando vêem que estamos com as nossas amigas na discoteca, a gastar o nosso próprio dinheiro, têm a coragem de perguntar quanto cobramos. Há uma imensidão de mulheres brancas ali, mas as mulheres negras são abordadas de uma forma extremamente agressiva e absurda”, conta Geanine a partir das suas experiências em Portugal. Nem sequer lhes perguntam o nome. “Querem, simplesmente, usar-nos para ter sexo.” “É como se os homens se sentissem ainda mais livres para assediar mulheres que não são brancas, que têm o cabelo crespo, que têm outras identidades que não encaixam nos padrões europeus. Espera-se delas praticamente um agradecimento do assédio.”

Kitty Furtado, 48 anos, já sentiu isso na pele. “Num dos meus primeiros empregos, o pai do meu chefe resolveu um dia convidar-me para jantar. Eu nem disse nada. Tinha 17 anos e no meu rosto devia ver-se tudo aquilo em que estava a pensar. O indivíduo ficou tão irritado com a minha expressão que desatou a insultar-me: ‘Eu sei muito bem como vocês são e o que querem, porque eu estive em Angola e vocês até se pelam com os homens brancos.’ Ele insultou-me e insultou também todas as mulheres negras, todas as minhas ancestrais. Eu não disse nada. É a primeira vez que estou a falar sobre isto”, diz a investigadora da Universidade do Minho, que trabalha com representações identitárias no cinema pós-colonial de Portugal e Moçambique. “Tive medo do escândalo, da humilhação pública. Não sabia o que ele ia dizer e fazer, o que ia inventar.” Kitty lembra-se “sempre deste caso” quando agora se pergunta porque é que as mulheres não denunciaram ou não denunciam situações de assédio — uma pergunta feita tanto por homens como por mulheres. “É tão injusto. As mulheres só podem falar quando sentem que têm uma voz para falar, quando não vão ser descredibilizadas.”

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Corpos sem subjectividade

Em qualquer situação de assédio, o corpo da mulher é visto como algo que não lhe pertence. Como algo que está ao serviço de outrem, sem desejo sexual e agência sexual próprios. Mas mesmo aqui há vários níveis de objectificação e activação de estigmas. Para Odete C. Ferreira, as suas experiências de assédio enquanto mulher trans implicam quase sempre uma “interpelação ligada ao trabalho sexual”. “A coisa que mais me perguntam é: ‘Quanto é que levas?’ Eu não existo em espaço público sem ser como trabalhadora do sexo trans.” Essa percepção faz com que o assédio de rua seja “constante”. “Acontece sobretudo durante o dia e quase sempre ligado a uma perseguição. Mas também há o assédio online”, conta. “É como se eu só existisse para satisfazer as vontades da entidade masculina que me aborda.”

Em Portugal, também muitas mulheres brasileiras são associadas automaticamente ao trabalho sexual. Geanine Escobar: “Um dia estava em Lisboa para participar numa actividade académica e apanhei um táxi no Martim Moniz. O motorista perguntou se eu estava a trabalhar. ‘Desculpe a indiscrição, mas eu tenho muitas amigas brasileiras prostitutas’, disse ele.” Carolina Marcello, 28 anos, activista do Slutwalk Porto, movimento feminista que se dedica sobretudo à luta contra o assédio e abuso sexual, reconhece bem essa “linha de pensamento xenófoba e machista”. “A última vez que tentei fazer queixa de assédio foi horrível. Estava no Parque da Cidade, a fazer um piquenique com uma amiga. Um tipo com uma farda de trabalho de lá começou a chegar-se a nós, a despir-se e a fazer o movimento de masturbação. Chamei a polícia, mas além de terem minimizado a situação, quando viram nos meus documentos que era brasileira — como vivo cá desde pequena não tenho sotaque, portanto não perceberam logo — perguntaram desconfiados como é que eu me sustentava em Portugal.” Carolina, que trabalha em gestão de media, devolveu a pergunta. “Está a perguntar-me se sou trabalhadora do sexo? E se fosse quer dizer que não tinha o direito de me queixar, se tivesse sido assediada?”

Para muitas mulheres, a polícia não é sinónimo de protecção, mas sim de mais discriminação e impunidade. “Quando um grupo de rapazes me bateu no rabo em pleno Rossio, dois polícias estavam mesmo lá ao lado e ficaram a olhar, sem fazer nada”, conta Odete. Maria Gil, activista, mulher e cigana de 45 anos, recorda um episódio numa esquadra do Porto. “Pedi protecção a um chefe de esquadra porque eu e a minha filha estávamos numa situação de risco e ele, no meio da conversa, vira-se e diz: ‘Pois, porque as mulheres ciganas começam a apanhar no pito muito cedo.’ Levantei-me e saí. Percebes que não és válida nem como cidadã nem como mulher.”

No caso de muitas mulheres ciganas, diz Maria Gil, o problema do assédio tem de ser gerido dentro e fora das suas comunidades — e também ele está intimamente ligado ao roubo da autonomia e liberdade identitária dos corpos. Se na sociedade muitas mulheres ciganas são vistas “ou como feirantes ou como seres exóticos e secretos, com uma sexualidade muita activa”, dentro das comunidades “a menina cigana é desde muito cedo sexualizada”. “É esperado que tenha uma conduta que mostre que está disponível sexualmente para estar noiva e formar família, mas que ao mesmo tempo tenha um recato e uma formação para o lar”, explica Maria. É um assédio rasteiro disfarçado “de protecção”.

Efeitos psicológicos do assédio

“Às vezes parece que não sou uma pessoa. Durante e depois de ser assediada fico a sentir que não tenho acesso a subjectividade. E isso é algo muito forte. As pessoas pensam ‘assédio é só ultrapassar, não pensar nisso’. Mas quando se torna assim tão recorrente não é”, diz Odete C. Ferreira. “Acabas por te habituar, mas o processo de habituação é um processo de quebramento. Tu não vais ultrapassando, vais partindo-te. É um pequeno trauma.” Para Odete, o assédio é muitas vezes um misto de “condescendência, humilhação e bullying”. “Já aconteceu tocarem-me em áreas como o rabo e o genital em praça pública, para me humilhar. Há uma inspecção do meu corpo, como se quisessem denunciar uma espécie de condição falsa da minha feminilidade através do assédio sexual.” Já nas experiências de Geanine Escobar, “o sarcasmo” anda de mãos dadas com “uma certa violência psicológica”.

É preciso deixar bem claro que o assédio sexual pode implicar não só agressão (ou tentativa de agressão) e contacto físico não consensual, como também insinuações, comentários, piadas, olhares intimidatórios, convites e propostas de teor sexual que não são desejados por quem os recebe. É uma invasão do espaço privado da pessoa, reduzindo-a a um objecto pronto a usar. Não é um elogio, é humilhação. E isso tem repercussões psicológicas, também elas variáveis. “O assédio é uma violência de género brutal, na minha perspectiva com vários patamares de funcionamento”, refere a psicóloga social Conceição Nogueira. Todos os patamares são violentos, mas “com efeitos psicológicos distintos” — o que depende não só do nível de gravidade das agressões e da sua frequência, mas também “de quem recebe o assédio”. “Nada é independente da posição que a pessoa ocupa na sociedade. Há casos em que o assédio exaspera, irrita, cansa; há outros em que gera também ansiedade, pânico, depressão, esgotamento.”

O modo leviano e superficial com que se costuma abordar a realidade do assédio e as suas possíveis repercussões psicológicas conduz-nos ao mito de que é fácil denunciar ou até reagir à situação. “Pensamos que temos reacção para tudo, mas é muito assustador ouvir determinadas coisas”, considera Geanine Escobar. Conceição Nogueira lembra como denunciar o assédio sexual no local de trabalho e nas universidades (por exemplo, assédio feito por orientadores de teses) é ainda mais complexo, pois há relações de poder hierárquicas e a questão da sustentabilidade financeira e profissional. “Existem situações no local de trabalho em que as pessoas são assediadas durante anos e do qual não conseguem mudar. Há uma gestão quotidiana em torno do medo do assediador e só o acto de explicar a alguém o que está a acontecer é em si uma situação altamente violenta e ansiogénica.”

E aqui entra em acção a desacreditação e culpabilização da vítima — sobretudo quando o assediador é percepcionado como “um óptimo chefe, um óptimo colega, um óptimo marido, um óptimo pai, uma óptima pessoa”, refere a psicóloga social, realçando o facto de não existir um perfil de assediador. “A mulher que denuncia passa muitas vezes por doida. Diz-se que ela é que o atiçava.” Deixa de ser “uma pessoa” e passa a ser “aquela que foi assediada”, sendo submetida, do ponto de vista social, a uma constante radiografia. “Olha aquela que fez queixa, olha como ela vai vestida, como fala, como se move.”

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Estereótipos de género numa cultura sexista

Culpa-se a mulher pela forma como se veste, como se não ocorressem situações de assédio independentemente da roupa que se usa. Culpa-se a mulher por não ter vergonha do seu corpo. Todo este processo de culpabilização e medição da dignidade espelha uma série de construções sociais e estereótipos de género que vão ganhando outros estigmas consoante as especificidades identitárias da pessoa assediada (etnia, orientações sexuais, etc.). Várias construções ligadas à mulher e à feminilidade — interiorizadas e reproduzidas tanto por homens como por mulheres — têm sido também perpetuadas na Justiça portuguesa, concluiu a socióloga Isabel Ventura na sua tese de doutoramento Medusa no Palácio da Justiça — Uma História da Violação, que será editada em livro no primeiro trimestre de 2018 pela Tinta da China.

Uma das “ideias flutuantes — ideias que “viajam pelos séculos e que se mantêm de forma reconfigurada ou não” — é a divisão entre “mulheres honestas e desonestas”, aponta Isabel Ventura. No caso da mulher, a honestidade é vista como algo relacionado com a sua “experiência e moral sexual”, o que, por sua vez, se articula com o “princípio intrínseco negativo feminino” — a ideia de que a mulher faz coisas “ou para seduzir ou para prejudicar o homem”.

O corpo da mulher “provoca a incontrolabilidade masculina”, ou seja, “é desculpável que os homens se descontrolem perante a rejeição de uma mulher ou a possibilidade da perda do acesso à mulher”, explica a socióloga. “Isto é visível em muitas das nossas decisões judiciais. Lembro-me de um acórdão muito recente de um incendiário que teve uma pena suspensa e uma das argumentações era que ele estava bastante perturbado porque a mulher se tinha divorciado dele.” Este desconforto, frustração e potencial comportamento agressivo de alguns homens perante um não da mulher remetem-nos para as questões interrelacionadas do consentimento e da masculinidade hegemónica, que são centrais para descodificar as raízes do assédio e da violência de género no geral. “Uma das componentes da masculinidade hegemónica é a não-aceitação do não”, aliada “à crença de que assediar é um elogio”, nota Conceição Nogueira. Forçar a intimidade não é sedução nem flirt; é assédio. “A pessoa diz que não, mas é para se fazer de difícil, portanto deixa tentar mais duas ou três vezes, mais quatro ou cinco”, exemplifica Conceição.

É imperativo que não se confunda este exercício de dominação e poder com patologias e questões de repressão sexual. Recorrer a essa justificação aleatoriamente é uma forma de desculpabilizar quem assedia e de distorcer o problema. “Alguns indivíduos poderão ter algum tipo de desordem psicológica que os incite a comportamentos sexuais desadequados e/ou violentos, mas na maioria dos casos de assédio estamos a falar de pessoas sem qualquer patologia”, sublinha Conceição Nogueira. E acrescenta: “Todas e todos nós temos responsabilidade, porque contribuímos reificando, mantendo, justificando ou valorizando estes comportamentos como sendo ‘naturais’ nos homens. Não há aqui nada de biológico ou instintivo. Apenas educação e construção social enraizadas numa cultura sexista que valoriza o ideal masculino.”

Este enraizamento da masculinidade hegemónica na educação e nas dinâmicas de sociabilização não significa, como é óbvio, que todos os homens sejam machistas e que assediem mulheres. Mas faz com que muitos deles não tenham “consciência crítica”. Por isso tantas vezes “não problematizam” as situações de assédio, nota Conceição Nogueira. Uma das vias para a consciencialização passa por “apresentar exemplos melhores” daquilo que podem ser masculinidades não tóxicas, sugere Leonor Matos Correia, fotógrafa e activista de 31 anos que presta apoio a vítimas de abuso sexual e de violência psicológica, a nível individual e dentro de circuitos de música independente. No seu caso, fazer esse trabalho já incluiu “ouvir os abusadores” para tentar compreender “a lógica que os levou a ter certos comportamentos”. E para “os educar”. 

“Muitos não compreendiam o que era o consentimento. Não compreendiam que o que faziam era errado, porque cresciam num ambiente onde viam aqueles comportamentos a acontecerem à sua volta, com pais e amigos, e na televisão”, conta Leonor. “Até há muito pouco tempo as violações eram retratadas na televisão com algo erótico para os homens. E há exemplos de masculinidade moderna, como o [protagonista da série] Dr. House, que glorificam uma certa ausência da capacidade de empatia”, observa a activista. Isso contribui também para uma naturalização e banalização de comportamentos de dominação — porque o assédio é sempre um acto de poder, nem que seja simbólico.

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Educação de género e de cidadania de género 

Para acontecer uma mudança estrutural no combate à violência de género é premente investir seriamente na educação. “É preciso haver educação de género e de cidadania de género nas escolas desde os níveis mais iniciais. É grave não se entender a questão do género como algo absolutamente central nos corações das sociedades contemporâneas”, afirma o investigador João Manuel de Oliveira. Essa educação tem de passar também pelas brincadeiras nos recreios. A socióloga Isabel Ventura dá o exemplo dos apalpões nas escolas. “Para mim foi uma coisa traumática. Fico perplexa ao saber que isto acontece ainda hoje e que nada é feito. Desde pequena que te é ensinado que o teu corpo não vale nada.” João Manuel de Oliveira vai mais longe: “A questão é tão séria que é quase como se a definição do que é ser mulher implicasse um acesso ao seu corpo.”

Não basta existir legislação contra o assédio. “As leis podem contribuir, mas as leis não fazem tudo”, defende João. “Tem de se mudar uma coisa muito mais profunda: este feminino e este masculino que nas suas definições admitem a violação dos direitos das pessoas.” Até porque, como lembra Conceição Nogueira, a ideia hegemónica “do fazer homem” e as expectativas sociais que daí decorrem podem ser nocivas também para eles. “Mesmo quando um homem tenta afastar-se da masculinidade tóxica é muitas vezes abafado, posto em causa.” A escritora feminista bell hooks resume esta problemática de forma certeira no seu livro The Will to Change: Men, Masculinity and Love (2004), do qual citamos um excerto: “Os homens precisam de novos modelos para a auto-afirmação que não requeiram a construção de um outro inimigo, seja esse outro uma mulher ou um feminino simbólico.”

Nesse sentido, outra das medidas importantes é a reabilitação de agressores. “Nós não temos isso bem feito em Portugal, mesmo no caso de violadores”, observa João Manuel de Oliveira. Mais uma vez, a criminalização não é suficiente. “A solução para a masculinidade tóxica não é pores dentro de uma prisão um homem problemático no meio de outros homens problemáticos sem dar educação, formação e reabilitação”, assinala Leonor Matos Correia. “Isso cria um ódio misógino e mais serão as vítimas”, alerta João Manuel de Oliveira. Afinal, o objectivo disto tudo não é policiar as relações entre homens e mulheres. É aprender “a compartilhar e co-habitar o mundo”, resume o investigador. “O que está em causa é impedir o acesso indesejado ao corpo das mulheres como se fosse propriedade pública.”

Depois há os mecanismos de prevenção que devem ser postos em prática nos locais de trabalho, “onde há dezenas e dezenas de casos de assédio sexual escondidos”, lembra Conceição Nogueira. Apesar de a Lei n.º 73/2017 ter vindo reforçar o quadro legislativo para a prevenção e criminalização do assédio moral e sexual no trabalho, para a professora da Faculdade de Psicologia do Porto devia apostar-se num acompanhamento “integrado” e “especializado” que não estivesse apenas orientado para a queixa. Que garantisse, antes de mais, um ambiente seguro em que as pessoas pudessem falar sobre a sua situação e serem ajudadas a “gerir o caso”. “Isto tem de ser feito com cautela, até porque os assediadores podem ser os donos das empresas.”

Claro que para isto seria necessário as empresas “terem formação profissional em questões de assédio”, adverte João Manuel de Oliveira. Nesse sentido, considera o investigador, teriam de ser canalizadas para esta área mais verbas do Estado. “Nós temos os planos nacionais para a igualdade de género em que essas questões são incluídas, mas, como as pessoas continuam a achar que é um assunto menor, não há o investimento público sério que permita fazer face a todas as exigências do sistema.”

Para Sandra Cunha, socióloga e deputada do Bloco de Esquerda, não há dúvidas de que as questões de género e igualdade são uma área que “exige sempre um maior financiamento”. Desse modo, a CIG — Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que depende da presidência do Conselho de Ministros, “poderia desenvolver mais actividades e formações” do que aquelas que já tem em curso (e aqui é importante mencionar o projecto Art’themis desenvolvido pela associação feminista UMAR junto das escolas e em parceria com a CIG). Contudo, avalia a deputada, o ponto essencial é existir “mais transparência em relação à forma como estes financiamentos são feitos e aplicados”. “Este Governo fez uma alteração importante e positiva que foi o gender budget [orçamento de género] — ou seja, cada ministério é obrigado a inscrever no seu próprio orçamento uma verba destinada às questões da violência de género, igualdade de género e da não-discriminação”, esclarece. “No entanto, já passaram dois anos e não conseguimos perceber ainda que verbas estão realmente a ser alocadas para isso e como estão a ser gastas. Mas vamos continuar a perguntar e a insistir até termos uma resposta.”

A deputada do Bloco de Esquerda defende que a educação sobre género deveria de ser posta em prática “nas escolas, nos serviços públicos, nas forças de segurança, na Saúde, nos meios de comunicação social”. Nesta equação tem de entrar também a luta contra o racismo, lembra Ana Fernandes, do colectivo feminista Roda das Pretas. “Eu procuro dar empoderamento à minha filha, mas há ferramentas que fazem falta. Gostava de ver livros infantis em que houvesse uma menina negra livre, que sonha, que faz as suas histórias.” A activista Maria Gil sublinha ainda que as propostas de educação não podem deixar ninguém de fora: “É mais difícil estes temas chegarem a comunidades excluídas, como são as comunidades ciganas. Nós somos ciganas e ciganos num país onde existe não só um machismo estrutural mas também um racismo e uma xenofobia sistémicos.”

Além da “mudança de mentalidades”, o combate ao assédio “passa muito por conseguir aplicar a lei”, defende Sandra Cunha. “E conseguir aplicar a lei passa por sensibilizar os agentes que trabalham com a lei: as forças policiais, que têm o primeiro contacto com as vítimas, e depois os tribunais.” Apesar de ainda não ter propostas de lei concretas, o Bloco está a pensar em “soluções” para combater a “constante naturalização da violência de género que ocorre nos tribunais” pela mão de magistrados, juízes e procuradores. “Alguns tribunais, com equipas multidisciplinares, têm formação especializada em violência de género, mas a maior parte não tem”, nota a deputada. “E há uma resistência muito grande desta classe profissional a formações.”

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Interpretações da lei

Clara Sottomayor, juíza do Tribunal Constitucional com um percurso reconhecido no activismo feminista, concorda que é “muito importante” investir neste tipo de formação especializada dentro dos tribunais. Até para evitar “interpretações mais literais” da lei de importunação sexual — em particular do conceito de proposta de teor sexual que foi acrescentada em 2015 ao Artigo 170.º do Código Penal, com o objectivo de criminalizar também o assédio verbal. “Uma interpretação mais literal [deste conceito] pode conduzir à afirmação ou à conclusão de que só uma proposta — ou seja, uma pergunta — é que é criminalizada.” Clara Sottomayor considera que a lei devia ter sido redigida de uma outra forma, de modo a “fazer face à maior parte das situações de assédio de rua”. “Não são perguntas, são afirmações e comentários altamente ordinários, violentos, humilhantes, intimidatórios, vexatórios.”

A juíza sublinha que esta lei “tem de ser interpretada de acordo com as orientações e os princípios” fixados na Convenção de Istambul, ratificada pelo Estado português em 2013 e que “deu origem às alterações legislativas de 2015”. “O Direito ensina-nos que a pessoa é universal, que não tem género. É um sujeito titular de direitos. A Convenção de Istambul veio ter em conta a violência de género, as realidades concretas em que as mulheres vivem, as suas experiências”, clarifica Clara Sottomayor, lembrando que mesmo nas universidades “tem de haver alterações nas metodologias de ensino e nas abordagens aos assuntos jurídicos”. Na opinião da juíza, falta ainda sensibilidade “na magistratura” para a questão do assédio sexual. Dá como prova disso a decisão, em 2016, do Tribunal da Relação de Coimbra em não ter considerado crime — nem de importunação sexual nem de abuso sexual de crianças — a frase “Ó pequenina, eu quero-te foder”, dirigida por um homem de 65 anos a uma menina de 10. “Por uma interpretação muito literal da lei, o tribunal considerou que não houve uma conversa pornográfica porque a menina não respondeu”, afirma Clara Sottomayor.

Ainda neste contexto, Isabel Ventura traz à tona outra questão: “a promoção do silenciamento das vítimas de crimes sexuais” por alguns profissionais da Justiça. Durante a sua investigação, a socióloga concluiu que é transmitida regularmente às mulheres a mensagem de que “os processos em tribunal são muito dolorosos e revitimizantes” — não para as preparar psicologicamente, mas para as dissuadir de dar seguimento à denúncia. “Há o reforço da ideia de vergonha. Estes discursos mantêm-se, apesar de ter havido um conjunto de alterações em termos legais que visam precisamente evitar ou atenuar os efeitos da vitimização secundária, como retirar o arguido da sala quando as vítimas testemunham”, explica Isabel Ventura. “Há uma promoção do silêncio mascarada como direito à escolha. E devo dizer que não verifiquei este tipo de ameaça em mais nenhum crime violento”, assinala. “É preciso perceber que quando as vítimas escolhem não apresentar queixa estão a fazê-lo de uma forma extremamente condicionada.”

Leonor Matos Correia conhece bem de perto este problema. “Numa das situações que vivi tive um advogado a dizer-me: ‘Estás pronta para sofrer a maior humilhação da tua vida em tribunal? Porque as estatísticas dizem que isto não te vai servir de nada’”, relembra. “As supostas figuras da autoridade que estão aqui supostamente para nos proteger dizem-nos para não partilharmos as nossas experiências. Por isso é que tantos casos não são sequer registados.”

Falar, falar mais

Combater o assédio e toda a violência de género implica transformar as sociedades. Para melhor. É preciso uma pequena revolução, e talvez 2017 seja o momento certo para ela. Para a iniciar, para a continuar. Agora que a discussão pública sobre o assédio está a ganhar tracção, é fulcral que não deixemos o assunto cair em esquecimento. E que tenhamos em conta todas as suas complexidades, nuances e especificidades. “Acredito mesmo que é um momento de mudança”, diz, optimista, Leonor Matos Correia. Já Odete C. Ferreira tem mais reservas. “Seria preciso o poder deslocar-se socialmente. É preciso a masculinidade perder poder e isso é mesmo muito difícil. É possível, claro, mas é preciso um esforço muito grande. Isso não está a acontecer em nenhuma zona social, geográfica e laboral.”

A falta de sentido de comunidade é também uma forte barreira a uma mudança estrutural, comenta Odete. “Quando vês uma situação de assédio, normalmente a primeira reacção não é proteger o outro, mas protegeres-te a ti não dizendo nada. A autopreservação interessa mais do que a preservação da comunidade”, afirma. “Por isso digo que estamos em estado pré-político, uma espécie de estado natureza. Cada um protege-se a si mesmo, quando a política deveria ser uma negociação entre o eu e o outro e sobre como estamos aqui para nos protegermos uns aos outros, para vivermos todos em segurança.”

Para Carolina Marcello, do colectivo Slutwalk Porto, os grupos feministas são uma forma de encontrar este sentido colectivo tantas vezes perdido, bem como um meio para se cultivar uma responsabilidade cívica partilhada. “Temos um tumblr em que as pessoas podem partilhar de forma anónima as suas experiências de assédio, mas as nossas reuniões também são abertas a essa conversa e a esse apoio. Esta ideia de grupo e sororidade dá-nos mais força.” A opinião de Ana Fernandes, do colectivo Roda das Pretas, segue a mesma linha. “É importante não nos isolarmos, quando passamos por situações de assédio. Trazê-las para os colectivos acaba por nos fortalecer individualmente e, enquanto grupo, ganhamos mais voz. É importante não silenciar.”

E é também crucial não silenciar o activismo feminista que está a ganhar terreno em esferas mais e menos visíveis. “Acho que hoje as meninas portuguesas são mais feministas, logo mais conscientes e informadas”, diz Kitty Furtado, investigadora na Universidade do Minho que pertence a grupos feministas na academia e online. Numa altura em que alguns cronistas de jornais optam por apelidar a recente torrente de denúncias de assédio sexual como “caça às bruxas” — e em que alguns homens se lamentam jocosamente nas redes sociais que “agora já nem se pode dizer olá às mulheres” —, convém dar a entender que a educação feminista é também uma forma “de compreender e desconstruir o que se passa à nossa volta, tanto para as mulheres como para os homens”, observa Carolina Marcello. Ou como resume a escritora bell hooks, “o feminismo é para toda a gente”.

“Acho que a partir do momento em que estamos a falar mais abertamente sobre violência de género vai haver fricção, vai haver reacção. É uma maneira de iniciar o discurso”, acredita Leonor Matos Correia. É preciso continuar a falar, falar mais. É preciso acelerar uma mudança que não acontecerá de um momento para o outro. “Na vez 45, se calhar quem não concordava connosco já nos vai dar razão e na vez 50 já podem ser essas mesmas pessoas a iniciar o discurso de maneira informada.” Continuemos então a tentar recuperar os anos, as décadas, em que não olhámos de frente para o assédio e abuso sexual — porque isso é também reconstruir sociedades mais justas. 

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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