Os dois teatros de António Costa

À primeira vista, Costa decidiu lançar-se numa fuga para a frente na cena internacional para compensar os desaires do teatro político doméstico.

António Costa parece efectivamente apostado em surpreender-nos. Com uma diferença de poucos dias representou dois papéis contrastantes no teatro político doméstico e na cena europeia. Cá dentro não hesitou em desautorizar, à última hora, os membros do seu Governo que tinham negociado um acordo à esquerda sobre a taxa a aplicar sobre as energias renováveis, levando Mariana Mortágua a pôr em causa a “palavra dada, palavra honrada” do primeiro-ministro. Motivo aparente do volte-face: a preservação do investimento estrangeiro num sector muito sensível para o futuro energético do país. Só que, independentemente das opiniões que se tenham sobre o assunto, nada permite explicar a descoordenação governativa — mais uma... — num espaço tão curto de tempo e revelando contradições gritantes entre o primeiro-ministro e os ministérios das Finanças e da Economia numa matéria sobre a qual já tudo deveria estar esclarecido.

Com o episódio caricato — mas grave — do Infarmed ainda na ordem do dia, António Costa expôs-se a um novo caso que compromete a sua credibilidade. Como é possível que um político considerado tão hábil e experiente tropece sucessiva e infantilmente em tão grosseiros acidentes de percurso e pareça até provocá-los (por gosto gratuito da provocação, desorientação ou alegado “cansaço”)?

À primeira vista, Costa decidiu lançar-se numa fuga para a frente na cena internacional para compensar os desaires do teatro político doméstico (e seguindo um percurso que lembra, apesar das óbvias diferenças, o do actual secretário-geral da ONU, António Guterres). As negociações entre Costa, Merkel e Macron terão sido decisivas para que Mário Centeno venha a ser nomeado presidente do Eurogrupo, contrariando recentes previsões que davam esse objectivo como inalcançável. E na reunião de ontem em Lisboa do Partido Socialista Europeu, o primeiro-ministro português, na esteira de Macron, defendeu uma reforma audaciosa da União Económica e Monetária (UEM) e do euro — permitindo superar as discrepâncias entre uma “moeda do Norte” e uma “moeda do Sul” — e propôs a taxação das grandes empresas tecnológicas que recorrem ao dumping fiscal em prejuízo da União Europeia (UE).

Passemos sobre a aparente contradição entre esta proposta — defendida também por outros governos e instituições da UE — e a arbitragem de última hora de Costa para salvaguardar as rendas do chamado lobby da energia em Portugal. Se Centeno for eleito amanhã para o Eurogrupo e se se consumar uma nova coligação CDU-SPD na Alemanha, para a qual o primeiro-ministro português também apelou no seu discurso de ontem, estariam reunidas algumas condições para Costa poder colher louros na cena europeia, onde o PS português aparece ainda como uma das raras esperanças da agonizante social-democracia na UE.

O duplo papel de Centeno — como ministro das Finanças e presidente do Eurogrupo —, além de ser contestado pelos parceiros à esquerda do PS, envolve riscos elevados de dispersão e conflito, mas representa uma oportunidade para fazer avançar a reforma indispensável da UEM. O que não parece sustentável — e ameaça a própria posição de Centeno — é o duplo papel de António Costa no teatro doméstico e europeu. Não é possível representar um papel ambicioso fora de portas quando internamente se assiste a uma representação desconexa e reactiva aos caprichos do destino. Enquanto Guterres trocou a política portuguesa por uma carreira internacional, o papel de Costa só faz sentido, pelo menos para já, como primeiro-ministro de Portugal. E é por isso que não pode descurá-lo.  

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