MCK: “A minha geração tem que fazer melhor que as anteriores"

Valores é o novo álbum de MCK, com edição marcada para o início do próximo ano. Seis anos depois, o rapper, voz da consciência angolana, regressará para fazer uma panorâmica do país que tanto mudou desde 2012.

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MC K, nome fundamental do rap angolano, prepara-se para lançar Valores

Katrogi Nhanga Lwamba está sentado à mesa de uma esplanada da LX Factory, em Lisboa. Numa mesa próxima nesta tarde quarta-feira nublada, estão Mr Isaac e Nel Assassin. Juntos, tinham acabado de sair do ensaio para o concerto que deram no Vodafone Mexefest. Katrogi Nhanga Lwamba fala-nos do que aí vem e do que está lá longe, tão perto. Katrogi é MC K, nome fundamental do rap angolano, voz de denúncia, de consciencialização e de resistência. “Voz de Angola”, como o apelidámos no Ípsilon em 2012, estava ele a editar Proibido Ouvir Isso, o seu terceiro álbum, sucessor de Trincheira de Ideias (2002) e Nutrição Espiritual (2006). Prepara-se agora para lançar Valores, que será editado no primeiro trimestre de 2017 e onde procura o mesmo que desde o início: “O sonho de uma maior liberdade para Angola, o sonho do fim da corrupção, o sonho de criarmos Angola como um país mais plural e mais democrático”.

Valores é um disco marcado por um novo contexto, o da saída de José Eduardo dos Santos, presidente do país durante quase quatro décadas, e da chegada de João Lourenço. “Tem menos de 60 dias no poder, o que é muito pouco tempo, mas já tenho poucas lembranças de José Eduardo dos Santos. Porquê? Porque começou a governar com sinais completamente diferentes”, diz MCK, pensando nas exonerações dos familiares do antigo presidente e das chefias militares que este mantinha sob sua influência, e manifestando a convicção de que, ao contrário do que lhe sucedeu num passado recente, não veria agora o seu passaporte apreendido pelas autoridades, sem justificação plausível, para o impedir de ir mostrar a sua música ao Brasil. Pensando também no facto de a televisão estatal ter passado a cobrir as províncias distantes de Luanda, a dar voz à oposição ou a reportar manifestações de trabalhadores reclamando melhores salários – “por força disso, a TPA [Televisão Pública de Angola], voltou a ter audiência”.

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É por tudo aquilo que diz já ter poucas lembranças de José Eduardo dos Santos. Não por lhe ser fácil esquecer a morte de Arsénio Sebastião "Cherokee", jovem lavador de carros que a Guarda Presidencial assassinou em 2003 – a sua culpa: cantar ao ar livre as rimas críticas do regime de uma canção de MC K, A téknika, as kausas e konsekuências. Não por ter esquecido a angústia que sentiu durante o muito publicitado caso dos 15 e a greve de fome daí resultante, levada em frente por Luaty Beirão (Ikonoklasta de nome artístico), amigo de música e de activismo há 20 anos. “José Eduardo dos Santos liderou um regime muito fechado, ditatorial, com pouco diálogo. Como foi horrível, João Lourenço tentar devolver a normalidade ao país parece extraordinário. Enquanto activistas cívicos, enquanto rappers, enquanto contestatários e, acima de tudo, sonhadores de uma Angola diferente, o que podemos fazer neste momento é tirar a nossa cidadania do modo em que estava, o modo vibrar, e pôr o som da chamada a tocar alto”.

Uma panorâmica sobre Angola

Há um padrão que sobressai quando olhamos para a discografia de MC K, o longo período de tempo que separa a edição de cada um dos seus álbuns. Há uma razão objectiva para que isso aconteça. MC K é rapper e foi na música, apesar das licenciaturas em Direito e em Filosofia que acumula, que encontrou o seu espaço de intervenção artística. Mas MC K não segue os ritmos habituais na carreira de um músico. Ele quer que a sua música tenha relevância real no tecido social angolano, que seja um retrato fiel do país em que nasceu em 1982. Para que assim seja, precisa da distância do tempo.

“Quatro, cinco, seis anos, são o tempo necessário para que assistirmos a transformações políticas, sociais, económicas e culturais. Desde 2012 até agora, Angola sofreu transformações drásticas. Nessa altura, a nossa economia crescia a dois dígitos, hoje vivemos uma crise económica pesada. Nessa altura, Angola era o El Dorado, agora é o sítio de onde os estrangeiros estão a fugir, com empresas a fechar todos os dias e desemprego altíssimo. A passagem do tempo dá-me uma vantagem muito grande. Dá-me a possibilidade de fazer uma panorâmica geral que não seria possível editando discos de dois em dois anos”.

Muito mudou, realmente. Em 2012, MC K cantava o País do Pai Banana, denúncia da subserviência de demasiados a quem detinha o poder. Seis anos antes cantava Atrás do prejuízo, canção admirável que, com participação de Beto de Almeida e fazendo uso de melodias da tradição popular angolana, era retrato de um quotidiano diário de luta pela sobrevivência em Luanda. Em Valores, por sua vez, ouviremos Violência simbólica (“náuseas, cólicas, violência simbólica / o povo está cansado desta gestão diabólica”), ouviremos Problemas, em que participam o brasileiro Mano Brown e o nosso Nel Assassin (“cabelo crespo / um metro e oitenta / eu estou na estrada desde a década 90”), ouviremos Associação de Malfeitores, dueto com Ikonoklasta (Luaty Beirão) que é celebração do percurso partilhado pelos dois (“são 20 anos de amizade, respeito e cumplicidade”).

Em Valores, ouviremos Ironizando a crise, outra das canções do novo álbum que vem revelando nos últimos meses. No vídeo que a acompanha, MC K como cidadão da classe média angolana, saindo de sua casa pela manhã, conduzindo o carro de boa cilindrada pelas ruas da Luanda mais próspera. A fachada é boa, mas o mundo que ela esconde está a desmoronar-se. 1000 kwanzas na carteira, quase nada, a filha em casa a desesperar com o frigorífico vazio, a mulher que perdeu os clientes do seu negócio, vazio igualmente, o lar tão despido que até o mais inesperado acontece – “eu tinha ratos no cubico / morreram todos à fome”. “É uma canção para o jovem que tem um emprego e que até consegue pagar as suas contas, mas que tem dificuldades em sobreviver com 10 euros na carteira”. É uma amarga ironia perante “a oportunidade ímpar que Angola teve como país com o boom do petróleo, que podia ter sido usado para redistribuir os rendimentos, para diversificar a economia e criar progresso social.”

Apesar das sombras e das dificuldades, MCK vê o momento que Angola vive como uma oportunidade. Sente pertencer a uma geração “privilegiada por viver num momento com maior volume de conhecimento”, tanto pela “experiência histórica acumulada”, como pelo “progresso científico e tecnológico” – “temos a felicidade de estarmos todos conectados através das redes sociais”. Tudo isso traz responsabilidade: “A minha geração tem que fazer melhor que as anteriores porque o volume de conhecimento e exigência é muito maior”. Optimista, sonhador com os pés fincados na terra, vê abrirem-se novas possibilidades. “Temos a oportunidade de dar início a uma geração de críticos sociais e culturais com uma visão completamente diferente das do passado. Esse é o desafio que João Lourenço vai viver”, acentua. “Ao manifestar o tipo de abertura que tem demonstrado, vai ser alvo de uma crítica com mais qualidade. José Eduardo dos Santos incomodava-se com quem reclamava falta de água e de luz, que é o básico e manifestação, em pleno século XXI, de um atraso muito grande. Agora, teremos a possibilidade de exigir mais que o básico, que os direitos fundamentais. Mais competência, maior exercício de cidadania, mais participação activa”.

Tradução directa e real da vida

MCK, nascido em Luanda, filho de um motorista de uma empregada doméstica, mais novo entre oito irmãos, é ouvido e respeitado pelo seu talento, pela sua integridade, e por ser um com o povo a que pertence. Cresceu “num bairro pobre sem qualquer assistência sanitária, sem creche, sem parque”, num contexto onde “as saídas mais óbvias são a criminalidade, o alcoolismo ou a prostituição”, e conseguiu singrar por força da sua vontade. “Isso oferece-me alguma legitimidade para questionar os problemas, porque os vivi, porque nunca fui privilegiado e sempre consegui vencer todos os obstáculos sem me calar”. Além disso, continua, “não tenho o discurso à distância do investigador ou do jornalista, mas o discurso na primeira pessoa de quem viveu o que relata, tradução directa e real de uma experiência de vida”. A vida de MCK, que é espelho e reflexo da história recente do seu país, conhecerá novo passo nos próximos meses. 

Valores será manifesto das convicções de sempre de MCK, adequadas à realidade presente. Musicalmente, reflecte “um tempo de aprendizagem extraordinária”. No último par de anos, foi um dos responsáveis pelo programa Ginga Beat da Red Bull Music Academy, emitido semanalmente na Vodafone FM, ao lado do radialista Joaquim Quadros, de Maze, rapper dos portuenses Dealema, e do DJ e produtor brasileiro Chico Dud. A experiência alargou-lhe os horizontes. “Senti-me um detective musical, pesquisando muito do que se produzia de folclórico, urbano e tradicional em Angola, Cabo Verde ou Moçambique”. Ao mesmo tempo, “comecei a ouvir coisas mais experimentais, mais viajadas e alternativas, o que afectou musicalmente as minhas construções rítmicas”. A procura de uma “angolanidade” mantém-se no recurso a samples locais, mas “num volume muito mais reduzido”, mesclado com “outras sonoridades da música ocidental ou da música clássica europeia”.

A par disso, chama até si a portuguesa de origem cabo-verdiana Mynda Guevara, o angolano Flagelo Urbano, companheiro de luta no hip hop do país, os brasileiros Mano Brown e Acácia Reis, o moçambicano Azagaia ou os já referidos Ikonoklasta e o DJ português Nel Assassin, que fez a história dos primórdios do hip hop português nos agora regressados Micro. O seu objectivo é “dar espaço aos países de língua oficial portuguesa, traduzindo a vivência de cada um desses espaços”. MCK, “no sotaque, nas histórias, nas abordagens", será "porta-voz do que é a angolanidade de cada uma dessas realidades, dando conta da realidade política e da vida social e cultural da Angola dos nossos dias”.

No entretanto, continuará a labutar no “laboratório de sobrevivência” que é Luanda. Definindo-se como “artista quase exilado” – “faço mais concertos fora do que em Angola” -, não tem na música a sua fonte de sustento. A música paga o que faz na música. Quanto ao resto, como todos num “país sem dignidade salarial, mesmo nos bons empregos”, multiplica-se em actividades. Diz-nos que podemos encontrar em Luanda gabinetes de juristas em cujas portas se podem ler anúncios de “vende-se gelo” ou de “vende-se sopa”, forma de compor o orçamento mensal numa cidade com um altíssimo custo de vida. Quanto a ele, trabalha em marketing, é locutor de rádio tanto em Portugal como em Angola, gere a sua editora, a Masta K, e é produtor de eventos. Em Janeiro, terminada a licenciatura em Direito, iniciará o estágio como jurista. A revelação dos Valores que defende para a sua Luanda, a sua Angola, chegará pouco depois. Estejamos atentos.

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