Até sempre, engenheiro Belmiro

Sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão.

Belmiro de Azevedo foi um grande empresário, não só em Portugal. Foi-o à escala global. Construiu o seu percurso e o seu império empresarial sabendo investir e sabendo gerir, dois conceitos que parecem ter caído em desuso num país em que o amiguismo e o tráfico de influências (“cunha”, em linguagem popular) se tornaram as armas para construir carreiras de gestores e empresas, além, claro, para conseguir crédito bancário.

Belmiro de Azevedo era um grande empresário e, como tal, era determinado. Ao ponto de não se calar. Ao ponto de, por diversas vezes, ter lançado comentários violentos, sobre o país ou sobre a classe política. Ao ponto de ter entrado em polémicas com o poder institucional.

Aconteceu há uma década com o Governo de José Sócrates a propósito da compra da Portugal Telecom, em que o Estado usou a golden share para impedir a Sonae de lançar uma OPA sobre esta empresa de comunicações. Mas aconteceu também antes com Cavaco Silva a propósito do Banco Português do Atlântico (BPA). E com António Guterres novamente em relação ao BPA.

Belmiro de Azevedo não se coibia de ser provocador. Um dos exemplos ficou nos anais da história parlamentar, quando foi chamado a uma comissão de inquérito ao suposto favorecimento da Sonae pelo Governo de Guterres pedido pelo PSD de Marcelo Rebelo de Sousa. Fazendo saber que começava a trabalhar cedo, exigiu ser ouvido às 8h da manhã, obrigando os deputados a antecipar a reunião.

Belmiro de Azevedo tinha três características que prezo particularmente. Sabia apostar nos outros, confiava e promovia aqueles em quem via capacidades e mérito. Preparava-se intelectual e tecnicamente, sempre, para enfrentar os riscos dos negócios em que se metia. E, last but not the least, não tinha medo de correr riscos. E correu-os. Belmiro de Azevedo era um homem desassombrado. Mas Belmiro de Azevedo era igualmente um homem simples. Mais: não era deslumbrado. O dinheiro nunca lhe subiu à cabeça. Percebi a sua frugalidade e despojamento quando, em 1999 — naquela que foi a primeira das grandes entrevistas que deu ao PÚBLICO —, acompanhei a Teresa de Sousa e o Pedro Camacho ao Algarve, para o entrevistarmos, estava ele de férias num resort da Sonae. Deliciei-me não só com a frontalidade e até ironia das respostas mas também com a gestualidade e os hábitos de pessoa comum, de pessoa que era o que era, sem armações, sem pseudobetices, sem “ceninhas postiças”. Senti mesmo um prazer íntimo ao ver o à-vontade com que nos recebeu de calções e bebia goles de Água das Pedras pela garrafa.

Como é normal, sendo jornalista do PÚBLICO desde a sua fundação e tendo entrado nesta redacção em Setembro de 1989 como estagiária — ainda o jornal ia começar a treinar os “números zero” —, há um lado de Belmiro de Azevedo pelo qual tenho um particular interesse, admiração e gratidão: a forma como soube perceber o projecto jornalístico que lhe foi apresentado no final dos anos 80 do século passado por Vicente Jorge Silva, Augusto Seabra, Jorge Wemans, José Manuel Fernandes e Nuno Pacheco.

Fê-lo com desprendimento, com distanciamento, com frieza de cálculo de gestão e com visão estratégica. Percebeu que podia revolucionar a comunicação social em Portugal e arriscou. Fez um jornal que marcou e marca o panorama da comunicação social portuguesa.

É certo que o PÚBLICO foi um investimento financeiro que raramente deu lucro. É certo que várias vezes Belmiro de Azevedo deu um murro na mesa. Chegou a dar um prazo de vida ao jornal. Mais de uma vez, o PÚBLICO sofreu convulsões, cortes e constrangimentos por razões financeiras. O que me parece legítimo como acto de gestão do ponto de vista do empresário, já que, sendo também um investimento, não era nem deve ser para perder dinheiro, ou pelo menos não perder muito.

Creio, contudo, que Belmiro de Azevedo sempre aceitou perder dinheiro com o jornal porque sabia que o PÚBLICO era e é muito mais do que isso. É um projecto que tem uma função social. É um agente de uma sociedade democrática. E creio estar certa quando penso que Belmiro de Azevedo sempre se orgulhou de fundar e de ser dono do PÚBLICO.

É preciso dizer, porém, que Belmiro de Azevedo nunca se serviu do jornal. Não interferiu na linha editorial nem no trabalho da redacção. E manteve sempre a devida distância. Visitou duas vezes a redacção, uma no início, outra quando o jornal se mudou, em 2013, para as actuais instalações em Lisboa. E, dentro dos constrangimentos financeiros a que esteve e está sujeito, o PÚBLICO sempre viveu em total liberdade e independência editoriais.

O espírito de liberdade, a marca-d’água do PÚBLICO, permitiu à redacção manter viva a chama do jornalismo independente. Uma liberdade que foi e é acompanhada, quase sempre, mesmo em momentos de crise interna, por um clima de informalidade e de frontalidade só possível numa redacção livre. Há uma história do início do jornal que demonstra de forma quase caricatural este espírito aberto. Nas instalações da Quinta do Lambert, em Lisboa, o jornal adoptou dois cães vadios: o Sonae, que depois ganhou uma namorada, a Belmira. Acredito que Belmiro de Azevedo, se soube, terá achado graça.

Quando, no início de 1990, fazíamos mais um “número zero”, a editora da Política, Áurea Sampaio, mandou-me ao aeroporto de Lisboa para pedir um comentário de Alberto João Jardim sobre um assunto que se perdeu na minha memória. O que não esqueci nunca foi a cena em si. Apresentei-me como jornalista do PÚBLICO e fiz a pergunta. O presidente do Governo da Madeira respondeu-me: “Não falo a jornais do continente.”

Na minha ingenuidade de então e desconhecendo ainda o léxico de Jardim, achei que ele estava a dizer que não falava ao PÚBLICO porque era o jornal do supermercado Continente. Até porque, à época do lançamento do PÚBLICO, era comum ouvirem-se comentários jocosos sobre o jornal ser de um homem conhecido pela sua cadeia de supermercados. Ouvi mesmo por várias vezes o comentário de ser paga pelo “lucro da venda de alfaces e de amendoins”.

Sempre foi motivo de orgulho, para mim, ser paga com dinheiro “da venda de alfaces e de amendoins”. É bom saber que não sou paga pelo lucro de negócios escusos, de investimentos em offshores ou que as pessoas suspeitem até de que a origem do financiamento do PÚBLICO esteja ligada a cartéis de droga.

Por isso, e por tudo o resto que o PÚBLICO representou e representa, tenho um enorme orgulho e uma imensa honra de trabalhar há quase 30 anos para Belmiro de Azevedo e para a sua Sonae. Obrigada, senhor engenheiro.

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