Iliberalismo, negócios e influência estratégica: a China e a Europa de Leste

A fractura cultural, política e económica que separa as duas Europas torna a China um parceiro atractivo para os países do Leste europeu.

1. Não é exagero afirmar que a divisão entre o Ocidente e o Leste europeu persiste após a queda do muro de Berlim e o fim da “cortina de ferro”. Sob a superficialidade de uma Europa integrada e unificada pela União Europeia continuam a existir várias Europas. Não é apenas uma divisão económica e de bem-estar, com os Estados da Europa ocidental genericamente mais ricos e desenvolvidos que os do Leste europeu. Persiste, também, uma divisão ideológica mais profunda, nem sempre perceptível ao primeiro olhar. Não é a mesma da Guerra Fria, entre socialismo-comunista e democracia liberal, mas está, em parte, na sua continuidade. Em termos simples, a divisão ocorre sobretudo em torno dos actuais valores liberais da Europa ocidental, que configuram o ideal de uma boa sociedade. Não têm similar grau de adesão na generalidade do Leste europeu. A crise da Zona Euro e dos refugiados expôs abertamente essa fractura.

2. Na Europa de Leste, partidos normalmente considerados populistas, nacionalistas e iliberais, pelo menos sob o olhar ocidental, ocupam, frequentemente, o poder. Os casos da Hungria (partidos Fidesz e Jobbik) e da Polónia (Partido Lei e Justiça) são apenas os mais conhecidos. É possível, facilmente, encontrar outros exemplos na República Checa, na Eslováquia, etc. Há razões de substância para isso. Uma primeira tem a ver com a forma como se constituíram as democracias a Leste no final da Guerra Fria. Emergiram por oposição ao autoritarismo opressor dos regimes socialistas-comunistas anteriores. O resultado foi que as ideologias à esquerda não só têm o ónus do passado como perderam credibilidade. Esta é uma diferença fundamental face às democracias do Sul da Europa que emergiram nos anos 1970, onde o ónus do autoritarismo político e do passado opressor recaiu sobre a direita. Foi esse o caso da Grécia (sob a ditadura dos coronéis), de Portugal (sob o regime salazarista) e de Espanha (sob o franquismo).

3. Mas há outras diferenças cruciais. No Leste europeu, a ideia de Estado-nação soberano e de uma nação tendencialmente homogénea, ligada pela mesma língua, cultura e tradições, continua a ser politicamente atractiva e a permanecer aos olhos de muitos, provavelmente da maioria da população, pelo menos em certos Estados, como o modelo ideal de uma boa sociedade. Explica-se, pelo menos em parte, por estarmos perante Estados relativamente recentes de um ponto de vista histórico. Há o sentimento de um “défice” de soberania. Não sentem a mesma necessidade de a transferir, progressivamente, para instituições europeias, devido aos excessos dos nacionalismos do passado, como os europeus/ocidentais, que estão na origem do processo de integração. O fardo da culpa colonial também não existe no Leste europeu, que não tem qualquer tradição de ligação a povos de outros continentes, comparável à de britânicos, franceses, holandeses ou portugueses. Ao mesmo tempo, as suas sociedades estiveram “congeladas” entre o final da II Guerra Mundial e a queda do muro de Berlim. Mantiveram-se aí hermeticamente fechadas aos grandes fluxos migratórios que transformaram o Ocidente.

4. Os valores do liberalismo ocidental pós-moderno, que, nesse mesmo período, substituíram, progressivamente, o ideal da nação homogénea, ligada por uma mesma cultura, valores e tradições, pelo ideal da diversidade cultural (vista como boa, em si mesma, e devendo ser promovida pelos poderes públicos), não fizeram o seu caminho no Leste europeu. O resultado gera uma incompreensão fundamental entre ambas as Europas: a ocidental não compreende como a de Leste não acolhe hoje, de bom grado, os direitos das minorias étnicas, religiosas não cristãs, ou sexuais que, na sua óptica, devem ter direitos protegidos mesmo contra a vontade da maioria (e vê isso como uma evolução com elevado valor moral). Nem o Leste europeu compreende a razão pela qual a Europa ocidental não defende a cultura e valores que lhe davam identidade ainda num passado recente, nem o Estado-nação soberano e homogéneo como modelo de boa sociedade. A antiga Alemanha de Leste, onde o partido populista Alternativa para a Alemanha (AfD) tem a sua maior base de apoio, mostra, inequivocamente, essa fractura.

5. A fractura cultural, política e económica que separa as duas Europas torna a China um parceiro atractivo para os países do Leste europeu. A União Europeia, não obstante os seus muitos atractivos de bem-estar material e até de segurança, condiciona, pela própria lógica do processo de integração, a soberania nacional. Ao mesmo tempo, é um obstáculo às políticas iliberais que vêem a democracia como vontade da maioria, sem outros constrangimentos. Como vimos, chocam com os valores do liberalismo ocidental pós-moderno, o qual impregna as instituições e políticas da União. A China, em rota de ascensão a grande potência global, não coloca nenhum desses problemas. Para esta, tal como no passado, a soberania é um princípio sagrado. O que se passa dentro de um Estado é assunto interno deste. Os valores patrióticos e nacionalistas também são um modelo a seguir. Pela sua distância geográfica, não levanta o fantasma de uma expansão geopolítica ligada a ambições territoriais sobre o Leste europeu, como a Rússia. Assim, a convergência política e de interesses aproxima, também, ambas as partes, facilitando um estreitamento das ligações económicas com uma dimensão estratégica à mistura. Olhemos para a actuação chinesa de penetração na União Europeia.

6. A grave crise financeira internacional que se projectou fortemente na Zona Euro, entre os anos 2010 e 2015, deu uma oportunidade estratégica à China de projectar a sua influência económica e política na União Europeia. Para além do caso português, onde é bem conhecido que a China adquiriu uma importante posição accionista no sector energético (EDP e REN), esta procurou reforçar a sua posição nos países mais débeis do Sudeste europeu (Grécia), mas também muito no Centro e Leste europeu. Foi nesse contexto que surgiu o Fórum Económico e de Comércio China-Países Europa Central e de Leste, em 2011. Está na origem das actuais cimeiras anuais dos 16+1, ligadas à “nova rota da seda" para expandir o comércio chinês na Ásia, África e Europa. A última destas cimeiras decorreu recentemente na Hungria, em Budapeste. A próxima será em 2018, em Sofia, na Bulgária. Onze Estados-membros da União Europeia (Bulgária, Croácia, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, Roménia, Eslováquia e Eslovénia) e cinco Estados dos Balcãs (Albânia, Bósnia-Herzegovina, Macedónia, Montenegro e Sérvia), potenciais futuros membros da União, participam nas cimeiras dos 16+1. Se exceptuarmos o Kosovo, que não está presente devido à oposição da Sérvia, a China conseguiu ter o pleno desta região da Europa nas suas cimeiras e parcerias. É sintomático da sua influência e capacidade de atracção.

7. Importa ter em mente que não estamos a falar apenas de negócios e de aspectos económicos. É verdade que estes têm uma expressão importante, especialmente em termos de infra-estruturas. Em 2016, a China, através de uma empresa estatal (a COSCO), adquiriu a participação maioritária no porto grego do Pireu. Anteriormente, em 2014, assinou um acordo com a Sérvia e a Hungria para construção de uma linha ferroviária de alta velocidade entre Belgrado e Budapeste. Outros Estados dos Balcãs beneficiam de empréstimos chineses com baixas taxas de juro para projectos de infra-estruturas. Para além de tudo isto, há, ainda, uma inequívoca dimensão política e estratégica. Na sua política externa, a China atribui grande relevo à cooperação com países em desenvolvimento, que se traduz habitualmente em investimentos em infra-estruturas ou indústrias estratégicas. Neste caso, o interesse da China no Mediterrâneo oriental e Leste europeu decorre, desde logo, da localização geográfica e do potencial logístico favorável à sua expansão nos mercados europeus dessa área.

8. Nesta aproximação há ganhos estratégicos para ambos os lados. Países como a Hungria procuram na China um contrapeso contra a própria União Europeia e as suas interferências na sua soberania interna. Para além das vantagens económicas e comerciais, a China é um parceiro ideal para democracias iliberais (e autoritarismos). Ao mesmo tempo, esta ganha também, pois aumenta a influência política no interior da União Europeia, bem como no seu exterior próximo, a Sudeste, nos Balcãs. Essa influência, ainda que limitada para já, é uma realidade palpável. Observa-se na ambição de a China obter o estatuto de economia de mercado na Organização Mundial do Comércio (OMC), apoiada abertamente pela Hungria, em divergência com a generalidade da União Europeia. Observa-se, também, na disputa nas ilhas no Mar da China Meridional, onde a Hungria e a Grécia bloquearam os esforços de uma posição unânime europeia. Uma interrogação fica ainda sem resposta: até onde irá, futuramente, esta mistura de iliberalismo, negócios e estratégia que abre a porta à penetração da China na União Europeia e agrava as suas divisões internas?

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