As novas tendências também já chegaram aos tintos portugueses

Há menos de duas décadas, os tintos do Novo e do Velho Mundo pareciam convergir num único sentido, sob a batuta do guru Robert Parker, amante de vinhos muitos extraídos e potentes. Hoje, as tendências de consumo recusam essa igualização em favor da diferença e da autenticidade, privilegiando os vinhos mais digestivos, com menos álcool e menos madeira, e mais naturais.

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Lara Jacinto/NFactos

Os vinhos tintos portugueses estão a mudar? Estão. Estão os de Portugal e os de muitos outros países. E não são só os tintos. Está tudo a mudar, na verdade: o mundo, nós próprios. Mais "robots" do que nunca, vivemos a sofreguidão do consumo, ora seguindo a manada, ora buscando o novo e o diferente, mas sempre como se não houvesse amanhã.

Durante muito tempo, o vinho viveu imune ao fenómeno da moda, preso num grande conservadorismo e amarrado à função de alimento básico. Mas hoje tem tanto de commodity como de produto cultural e diferenciado, de luxo até. E, por isso, sofre também dos humores dos mercados, das redes sociais, dos líderes de opinião e mesmo da ditadura do politicamente correcto.

O vinho não muda ao mesmo ritmo de uma colecção de roupa ou de uma nova geração de telemóveis, mas muda mais rápido do que se  imagina. Basta pensar como era o vinho em Portugal há duas ou três décadas. Numa primeira fase, mudou muito pela tecnologia e pelo conhecimento; depois mudou pelo efeito imitação, estimulado por gurus tipo Robert Parker; agora está a mudar porque a “parkerização” levou à igualização e esta a um sentimento de repulsa e porque os gurus de hoje já não são os críticos de vinhos. Ou, pelo menos, já não são só os críticos de vinhos. São também os enólogos, os chefes de cozinha e os sommeliers. No vinho, as tendências seguem hoje da base para o topo. Não começam nas revistas da especialidade e nas grandes cadeias de distribuição, apesar de ser aqui que se vende o grosso do vinho produzido; começam nas nossas casas, nas adegas, nos convívios entre enólogos, nos bares, nos restaurantes.

E o que é que os novos gurus sugerem? Vinhos com menos álcool e menos madeira, com mais elegância e pureza e mais ligados ao lugar e à tradição. Vinhos mais autênticos e também mais digestivos, em síntese.

Esta é uma tendência que já pode considerar-se global, embora haja mercados onde os vinhos muito extraídos e com longos estágios em barrica, e até com teores alcoólicos elevados, continuam a ser muito populares. Bordéus, por exemplo, que não está propriamente na moda, vende tudo para a China. Em Espanha, regiões como Rioja ou Ribera do Douro, onde o estágio em barricas novas é quase uma obrigação, continuam a ter muitos clientes no continente americano. Por cá, os vinhos mais encorpadados do Douro e do Alentejo, por exemplo, continuam a receber grandes pontuações e a vender bem. Ícones como o Pêra-Manca ou o Ferreirinha Reserva Especial são vinhos com 14,5% de álcool e longos estágios em barrica (ou tonéis).

“Chegou a nossa hora”

Produzir ao sabor das modas pode ser fatal, mas ignorá-las também. O movimento dos vinhos ditos naturais (é mais um movimento do que uma moda), por exemplo, está imparável. Um pouco por todo o mundo, mas sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, multiplicam-se os bares e os restaurantes que já servem vinhos feitos de forma mais natural. É um movimento que tem muito de estético mas também de libertário. É uma espécie de Maio de 68 dos vinhos. O efeito da pontuação dos vinhos e a ditadura do gosto imposta por Robert Parker levaram a uma homogeneização dos vinhos que atingiu um ponto de ruptura por saturação.

O que se assiste é a um grito de revolta contra esse gosto comum, a uma contra-revolução vínica assente na vontade de voltar a consumir vinhos feitos de forma menos massificada, com rosto, alma e mais genuinos. “Chegou a nossa hora. E que ninguém se iluda: este movimento veio para ficar, não é passageiro”, advoga João Tavares de Pina, produtor do Dão e um dos rostos da corrente dos vinhos ditos mais naturais em Portugal.

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Paulo Pimenta

A designação “natural” presta-se a muitas confusões, até porque não existe legislação específica, nem uma definição consensual. Basicamente, é um vinho feito sem químicos ou produtos industriais desde as uvas até à garrafa, incluindo sulfuroso. Este chapéu continua, no entanto, a abrigar tudo, incluindo vinhos estragados. É a estes, sobretudo, que o crítico João Paulo Martins se refere quando manifesta as “maiores reservas sobre o modernismo da malta dos blogues que gosta de coisas parvas, de vinhos com defeitos. Coisas bestiais só porque são feitas fora do baralho, tipo vinhos com redução, como o Clos de Crappe [da Niepoort), e acidez volátil elevada”.

Existem muitos consumidores receptivos a estes vinhos mais radicais, o chamado vinho “rock and roll”. Mas o movimento de que fala João Tavares de Pina contempla, sobretudo, vinhos com carácter, associados a um lugar específico e a práticas menos interventivas, tanto na vinha como na adega, vinhos com mais frescura e menos álcool e bem feitos. “Há muita gente a fazer tolices, mas também há cada vez mais gente a fazer grandes vinhos de uma forma mais natural”, advoga.

É verdade que há um certo fundamentalismo e arrogância em muitos dos produtores destes vinhos mais orgânicos, os quais tendem a colocar os outros produtores de vinho no lado dos maus. Mas também acontece o inverso. O que parece indiscutível é a virtude deste movimento, porque está a reforçar a dimensão cultural do vinho e levar o sector a a optar por práticas mais sustentáveis e mais ligadas à tradição e à terra.

“A graduação não é assim tão importante”

Ainda estamos longe de países como a França, a Alemanha ou a Áustria, mas em Portugal este movimento não tem parado de crescer, sobretudo na produção e na exportação. “Não temos vinho para satisfazer a procura” externa, garante João Tavares de Pina. Já há uma empresa nacional dedicada a estes vinhos, os Goliardos, e sucedem-se também as feiras mais alternativas. Uma delas, a Simplesmente Vinho, que se realiza no Porto, não tem parado de crescer e já se expandiu a Barcelona.

Embora considere que falar em vinhos naturais “é um tiro no pé, porque dá a ideia de que os outros não são naturais”, Anselmo Mendes, por exemplo, acha “boa” a tendência para os vinhos (tintos) “mais puros e elegantes, com menos álcool e extracção e também mais frescos mas com expressão da terra”. João Paulo Martins também vê com bons olhos que os vinhos “cheirem mais a vinho e menos a madeira”, que “estejam mais próximos da fruta original” e que o teor alcoólico esteja a baixar, o que “só prova que para fazer grandes tintos a graduação não é assim tão importante”. O crítico da Revista Grandes Escolhas e do Expresso aplaude também o abandono “da mania dos vinhos varietais, que numa fase inicial até teve graça”. “A nossa tradição sempre foi fazer vinhos de lote e ainda bem que estamos a voltar a esse modelo. A maioria dos vinhos ganha por ser constituído por várias castas”, defende.

Acha igualmente interessante a onda dos vinhos de talha, outra das tendências actuais, “sobretudo do ponto de vista etnográfico”, porque se trata de uma prática com muita tradição, em particular no Alentejo. “Mas daí a dizer que a talha é melhor do que o inox e a madeira!... É preciso ter senso. Os vinhos de talha são curiosos, mas nunca bebi um grande vinho de talha”, diz, lamentando os excessos associados às novas tendências. “Hoje, qualquer vinho que tenha madeira nova já é mau, dá-se logo uma má nota, e há também uma autêntica paranóia em torno da acidez dos vinhos e dos sulfitos, como se os sulfitos fossem um veneno”. Anselmo Mendes dá também o exemplo da cor nos vinhos. “Antes, criticavam-se os vinhos de cor aberta, agora criticam-se os vinhos carregados de cor. Estamos a passar do oito para o oitenta e isso nunca deu bom resultado”, diz.

Seja como for, até o próprio Anselmo Mendes já aderiu aos vinhos de cor mais aberta. O seu Pardusco é um bom exemplo. De resto, não é o único a seguir as novas tendências. O bairradino Luís Pato, por exemplo, também já tem um Baga Natural, de 2013, feito sem qualquer intervenção química, incluindo a adição de sulfuroso (mas como é um produtor precavido filtrou o vinho, para evitar desvios de origem microbiológica). Do Douro ao Alentejo, da Bairrada ao Dão, não faltam produtores a acomodar-se ao mercado e a entrar na “onda”. É certo que passar do oito para o oitenta nunca deu bom resultado, mas ficar sempre no oito também não. O mundo não pára, muda a grande velocidade e o vinho também. Até o nosso gosto muda.

 

Três rostos da mudança

Dirk Niepoort (Charme)

Quando, há cerca de uma década, Dirk Niepoort lançou o tinto Charme, um vinho de cor desmaiada e pouco extraído e com um preço alto, só faltou chamarem-lhe herege. Não havia nada igual no Douro.  O vinho rompia com o perfil clássico dos vinhos da região, mais carregados de cor e encorpados, ao ponto de o provador de Robert Pakrker para Portugal, Mark Squires, ter atribuído apenas 87 pontos ao Charme 2009, preterindo-o em favor de cerca de duas centenas de vinhos, muitos dos quais segundas e terceiras marcas dos respectivos produtores.

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Adriano Miranda

Dirk perseverou, o Charme é hoje uma marca consagrada e há dezenas de produtores no Douro e e um pouco por todo o país a querer reproduzir este estilo, muito borgonhês. Como tem acontecido com outros tipos de vinhos, Dirk soube interpretar o mercado global mais depressa do que os outros e foi pioneiro no Douro e também na Bairrada, com o Baga Poeirinho. Mais recentemente, anunciou o lançamento do Nat`Cool, um selo que pretende criar para um novo tipo de vinho, mais natural, de álcool baixo, preço acessível e, se possível, comercializado em garrafas de um litro. Também se ficou a saber que a Niepoort vai lançar o primeiro DOC Douro de Pinot Noir, mas aqui não há razões para bater palmas a Dirk. Não havia necessidade. Os tintos do Douro passam bem sem Pinot Noir. Até Bordéus passa e é uma região francesa. Da mesma forma que a Borgonha também dispensa a Cabernet Sauvignon. PG.

Rodrigo Filipe (Humus)

Rodrigo Filipe é um dos rostos principais movimento dos vinhos mais orgânicos em Portugal e do qual fazem parte também produtores como João Tavares de Pina (Terras de Tavares, Dão), Pedro Marques (Vale da Capucha, Lisboa), Vasco Croft (Aphros, Vinhos Verdes), António Marques da Cruz (Quinta da Serradinha, Leiria) e Fernando Paiva (Quinta da Palmirinha, Vinhos Verdes), entre outros. Os seus Humus, da zona de Óbidos, são já uma referência. Sem ser fundamentalista, é dos que mais leva a sério a aposta em vinhos “limpos”, sem ou com pouco sulfuroso.

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José Maria Ferreira

Como muitos, começou pela vinha. Em 2007, passou a tratar os seus nove hectares de vinha de forma biológica. Em 2010, fez o seu primeiro vinho natural, um tinto, ao qual não não adicionou sulfuroso. Em 2011, fez o primeiro branco livre de sulfuroso. Em 2015, um ano fantástico para este tipo de vinhos, Rodrigo Filipe fez cerca de 20 mil garrafas de vinho natural. "Comecei a fazer vinhos naturais como um desafio, porque tinham algo que me interessava, que era a autenticidade. E gostei do resultado. São vinhos que me dão muito prazer a beber. E também tenho tido bons feed-backs de pessoas que são intolerantes aos sulfitos", disse, um dia, ao FUGAS. Mesmo assim, Rodrigo não partilha do radicalismo de alguns produtores de vinhos naturais. "Há anos em que não é possível deixar de usar algum sulfuroso. É preferível usar algum do que fazer vinhos estragados", defende.

Paulo Laureano  (Tradições Antigas)

Os vinhos de talha voltam a estar na moda, sobretudo no Alentejo, onde esta tradição se perpetua há mais de dois mil anos. Quando falamos nestes vinhos, há um nome incontornável: José de Sousa. É um dos tintos históricos do Alentejo e um dos principais, senão mesmo o principal, emblema dos vinhos de talha. É feito na Adega José de Sousa Rosado Fernandes (Reguengos de Monsaraz), criada em 1878 e comprada em 1986 pela José Maria da Fonseca. A adega possui uma colecção de 114 ânforas de barro que continua a usar na vinificação de alguns tintos. (ver texto mais desenvolvido na página 20)

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Anabela Trindade

Apesar da reputação de tintos como o José de Sousa, a tradição dos vinhos de talha foi perdendo importância ao longo do tempo. Foi a Vitifrades que, em 2009, lançou o primeiro vinho de talha comercializado em talhinhas de barro de 0,75 l e que lançou também, em 2011,  o primeiro vinho de talha certificado como tal pela Comissão Vitivinícola Regional do Alentejo, a que deu o nome de Amphora. Mas há outros protagonistas envolvidos no ressurgimento dos vinhos de talha e na sua crescente popularidade junto dos consumidores. Um dos mais activos, juntamente com a Herdade do Rocim, tem sido Paulo Laureano, que já tinha a seu favor o crédito de só usar castas nacionais e fazer gala disso nos rótulos. Em 2010, começou também a engarrafar vinho em pequenas ânforas de barra. Chamou-lhe Paulo Laureano Tradições Antigas.

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