Sócrates, Salazar, Afonso Costa ou Fontes Pereira de Melo?

E ao terceiro dia, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa descansou.

Durante muitos anos e até há cerca de 15 dias, estava convencido que grande parte dos males que tradicionalmente se associam ao nosso funcionalismo público se deviam aos 40 anos de salazarismo.

O fazer o menos possível para não correr o risco de os colegas começarem a despejar trabalho para cima de nós, o empurrar os problemas para as secretárias dos outros de forma a termos a nossa limpa, mesmo que não tenhamos resolvido nada, o formal cumprimento exacto dos ritualismos legais evitando as questões de fundo sempre tão complexas e desagradáveis, tudo isto era, para mim, uma herança salazarista.

Estas atitudes e comportamentos dos funcionários públicos, que um grande amigo meu com dezenas de anos como funcionário público durante o salazarismo resumia na expressão “cumpram-se as formalidades legais”, eram verdadeiras marcas de água impressas, pelo obscurantismo salazarista, no nosso Estado e em todos os que dele faziam parte.

Mas há umas semanas, João Miguel Tavares, num artigo no PÚBLICO, veio desmontar a actuação da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) no caso do professor Domingos Farinho de uma forma que me faz duvidar desta minha convicção. Nesse artigo, indigna-se — com razão — com o facto de o director daquela faculdade se ter refugiado em “esclarecimentos patéticos”, esquecendo tudo o que já é do domínio público das relações entre aquele professor de Direito, José Sócrates, a tese de mestrado parisiense deste ou daquele, um Rui Mão de Ferro, a mulher do professor Farinho e as empresas do amigo de Sócrates. Para o director da FDUL, a faculdade fez o que tinha a fazer: perguntou ao professor Domingos Farinho se tinha realizado qualquer obra académica cuja autoria tivesse sido assumida por terceiro para efeitos de avaliação académica, o que este — surpreendentemente — negou e pediu-lhe as declarações de impostos que — surpreendentemente — não revelaram ter havido violação do regime de exclusividade. E ao terceiro dia, a Faculdade de Direito descansou.

Para mim, se quisesse caracterizar de um ponto de vista político-histórico este cúmplice formalismo da FDUL, diria que era uma manifestação da mentalidade/habilidade salazarista no nosso funcionalismo. Sucede que João Miguel Tavares radica esta actuação no espírito do socratismo. E acrescenta: por “espírito do socratismo” entendo isto — a recusa em assumir o que está à frente do nosso nariz, através do recurso a expedientes formais que são mera desculpa para a inacção. Este país está pejado de funcionários burocratas que preferem conformar-se à sua menoridade moral apenas para não terem o trabalho, e a chatice, de um dia tomarem uma posição disruptiva. Foi graças a essa mediocridade que Sócrates sobreviveu seis anos como primeiro-ministro, e é graças a essa mediocridade que as instituições deste país são a miséria que são.

Tenho, no entanto, a certeza que esta mediocridade não resulta do socratismo nem é uma manifestação do mesmo. José Sócrates não teve qualquer peso ou influência e muito menos duradoura no espírito dos funcionários públicos portugueses. Apresentou-se, de resto, como um reformador e com comportamentos socialmente disruptivos. Os seus lugares-tenentes e mesmo os seus seguidores mais longínquos não seriam certamente meros burocratas formalistas.

Mas se não tenho dúvidas que esta atitude da FDUL não é resultado de um qualquer espírito (?) do socratismo, ao ler aquele artigo assaltou-me a dúvida: e se também não é o resultado do salazarismo, da falta de liberdade e de responsabilidade durante os 40 anos do Estado Novo? Será que também eu tenho estado a ser vítima de um erro de paralaxe?

Será que, afinal, esta nossa atitude manhosa e medíocre é uma consequência do afonsismo, isto é, do reinado de Afonso Costa na 1.ª República? Ou do fontismo, isto é, da influência de Fontes Pereira de Melo em tempos do regime monárquico? Ou será que, no fundo, não é consequência da actuação dos governantes mas resulta dos próprios governados? Não estou nada descansado.

P.S.: Leitor, advogado e colunista deste jornal desde o primeiro dia, só posso lamentar profundamente a partida do engenheiro Belmiro de Azevedo, que teve a visão e a inteligência que, entre outras coisas, permitiu a existência do PÚBLICO.

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