A voz de um homem num dormitório feminino

Depois de Ivanov, o iraniano Amir Reza Koohestani regressa a Portugal com Hearing. Esta sexta-feira e sábado no Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa, uma peça em que as perguntas não dão tréguas.

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Hearing Amir Hossein Shojaei

Em 1989, o realizador iraniano Abbas Kiarostami colocou uma câmara diante de alunos do ensino primário da escola Shahid Masumi e questionou-os acerca dos trabalhos de casa. Inevitavelmente, as respostas abririam outras portas e alçapões que desvendavam muito mais do que o dia-a-dia escolar. Há três anos, muito depois de um primeiro contacto com o filme, Amir Reza Koohestani, dramaturgo e encenador nascido em Shiraz há 39 anos, voltou a cruzar-se com essas imagens no YouTube e percebeu algo que lhe tinha escapado até então. “Embora o tópico e as questões sejam simples, e os estudantes não sejam pressionados”, diz ao PÚBLICO, “dá para perceber que há muita ansiedade, muita preocupação e muito medo nos olhos deles quando se sentam em frente à câmara.”

Ao rever Homework, e reconhecendo no ecrã o filho de Kiarostami, da mesma idade que Amir Reza, o encenador começou a ruminar quão próximo teria sido daqueles miúdos com sete ou oito anos, na altura do término do conflito armado entre Irão e Iraque. “Apercebi-me de que deveria ser igual, teria o mesmo aspecto preocupado e assustado.” Essa reflexão foi o primeiro rastilho para a escrita de Hearing, peça integrada no festival Temps d’Images com que Koohestani regressa ao Teatro Nacional Dona Maria II, Lisboa, esta sexta-feira e sábado, 2 de Dezembro, – depois de ter mostrado naquela sala Ivanov, um dos espectáculos teatrais do ano 2016 para o PÚBLICO.

Esses dois tempos diferentes, o da inocência infantil e o da reflexão sobre o olhar passado, acabaram por ser determinantes na construção de Hearing. Nos dois actos da peça, vemo-nos diante de Samaneh, respondendo a um interrogatório acerca de uma noite de Ano Novo num dormitório feminino, confrontada com o facto de ter ouvido (ou estar convencida disso) uma voz de homem no quarto da sua amiga Neda. Mas enquanto o primeiro acto é profundamente realista e expõe a situação de transgressão, o segundo, socorrendo-se do vídeo e avançando 15 ou 20 anos no tempo, levanta uma série de perguntas e lida com a culpa, o arrependimento e as consequências da acusação inicial.

A interrogação deixada no ar pelo primeiro acto é sobretudo se o relato de Samaneh é factual ou produto da sua imaginação. “Temos adolescentes que ficaram sozinhas no dormitório e queriam muito estar em contacto com rapazes, por causa da idade, da biologia, da sexualidade de miúdas de 18 ou 19 anos”, contextualiza Koohestani. “Elas juntam-se muitas vezes para falar e pensar nos rapazes, ainda que não possam estar fisicamente próximas deles ali dentro. Por isso, há muitos rapazes imaginários a pairar no edifício, mesmo se não houver qualquer homem real, em carne e osso.” Mas a veracidade do facto pouco importa para o caso.

As perguntas que não se calam

O que importa é que, passados 15 ou 20 anos, o destino de Neda foi marcado por esse incidente e, ao apelar a asilo político na Suécia, a rapariga terá de responder às mesmas questões do passado, será intimada (como antes o fora) a apresentar provas de que o seu activismo político no Irão a colocava sob pressão política e social que necessitasse de protecção. E também as questões se repetirão para Samaneh. “Mas da segunda vez a Samaneh é mais velha, não tem a reacção nem o mesmo medo e tenta responder de forma diferente”, descreve Koohestani. “Só que isso não ajuda, porque quem faz as perguntas não consegue ouvir as novas respostas.”

Esta ideia de perguntas que se repetem independentemente das respostas chegou-lhe, afinal, da história – essa bem real – de “um amigo que teve um acidente de viação trágico, em que ele era o condutor, atropelou um guarda de auto-estrada e o seu pai morreu no acidente”. Tudo porque, segundos antes de perder o controlo do carro, tentava mudar o CD que tocava no auto-rádio. E a partir desse momento, passou a ser atormentado por perguntas: “E se não tivesse mudado o CD?”, “E se não tivesse levado o meu pai?”, “E se tivesse ficado em casa?”. “Acabou por ir ao psiquiatra”, diz o encenador, “porque não conseguia afastar-se das questões, questões que ele não podia mudar nem conseguia responder.”

Numa peça em que a responsabilidade indirecta sobre a vida dos outros é chamada à cena – “quando vivemos num país em que o nosso governo ajuda terroristas e mata inocentes na Síria e no Iraque não nos sentimos culpados só porque não fomos nós a carregar no botão”, reflecte o encenador –, o terreno de eleição de Koohestani parece ser esse das perguntas e de como viver com elas. Sabendo que nunca se calarão.

 

 

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