"Investiguem como deve ser, façam o vosso trabalho"

"Tal como Francisco Balsemão (um jornalista que criou um jornal, o Expresso), Belmiro de Azevedo confiava numa comunicação social independente e que não podia, nem devia, reflectir a visão que o dono tinha do mundo. E só um espírito muito aberto aceita isto."

Conheci o engenheiro Belmiro de Azevedo no final da década de oitenta, quando iniciei a minha carreira de jornalista no Semanário Económico. E isto foi antes de, a convite dos fundadores do PÚBLICO, entrar no projecto que a Sonae tinha para a comunicação social.

E desde cedo concluí que o mundo do engenheiro Belmiro não se esgotava no mundo das empresas e dos negócios. Era esse e mais. Era um mundo onde cabiam igualmente notícias, informação, jornais. E estava também ciente da importância que as matérias bem investigadas, com os riscos que sempre acarretam, têm na vida da comunidade, sobretudo num ambiente em que, cercado de assessores, de gabinetes de comunicação e de falsos dossiês, a tarefa do jornalista é a de desmontar as meias narrativas que lhes passam, contar a história que está por detrás da notícia. Este é o meu testemunho.

Certo dia, no começo da década passada, estava eu na AIP, com a Anabela Campos, agora jornalista do Expresso, na altura do PÚBLICO, à espera do empresário Henrique Neto, que íamos entrevistar no contexto de um trabalho sobre os bastidores das contrapartidas dos submarinos, quando alguém nos diz que o engenheiro Belmiro vem na nossa direcção. E vinha: “O que é que vocês estão aqui a fazer às 10h da manhã, em vez de estarem no jornal?” Dissemos que estávamos à espera de uma fonte. Na troca de impressões, observou:” Vocês deviam sair mais vezes do jornal para falar com as pessoas, deviam investigar mais.” E lá replicámos: “Isso é tudo muito giro, mas depois temos os directores a chatear com medo de processos, o patrão a mandar bocas...”

As palavras podem ser usadas de muitas formas e há as que só podem ser ditas quando há uma profunda convicção, e foi o caso, quando o engenheiro Belmiro nos transmitiu: “Investiguem como deve ser, façam o vosso trabalho que o jornal não vos deixa cair...” Ficámos literalmente a olhar para ele. E o episódio marcou-me para sempre. E muitos dos trabalhos que tenho desenvolvido é a pensar nesta conversa.      

Anos depois, a posição mantinha-se. Foi o que o PÚBLICO constatou a 10 de Março de 2013, quando, numa entrevista, o engenheiro Belmiro defendeu a investigação jornalística: “contar tudo”. E quando eu própria e o Manuel Carvalho o interpelámos, para aludir aos riscos, contrapôs: “Há sempre uma bola de escape. Se ele [o jornalista] sente que não está muito próximo dos 100% da verdade e que vai sair um artigo de risco, e que desse artigo vai sair um ataque violento contra o grupo, então não deve ousar publicar sem ter a cadeia toda a apoiá-lo.”

Outras cenas revelam o que todos bem sabemos: um patrão não se esquece de erros. Nos primeiros anos do PÚBLICO escrevi um texto sobre o desaparecimento de toneladas de urânio do depósito onde estavam guardadas. Errei no elemento químico, o que baralhava as contas, e acabou em contencioso judicial com acordo. Azar dos azares. Belmiro de Azevedo tinha a licenciatura em Engenharia Química, e desde aí sempre que me via comentava: “ É pá, você tem que ir estudar química.”

Belmiro de Azevedo foi um industrial que investiu num jornal para fazer um grupo de comunicação social porque acreditava que fazia sentido, mas ficou pelo caminho. E tornou-se uma pessoa que fez um jornal que manteve porque acreditava que era o seu contributo para melhorar a sociedade. Contam, a este propósito, que quando Belmiro de Azevedo se queixava dos custos associados ao projecto, o advogado André Gonçalves Pereira, que esteve à frente do Conselho Superior do PÚBLICO, objectava: “O seu investimento no jornal é uma questão de cidadania.”

Tal como Francisco Balsemão (um jornalista que criou um jornal, o Expresso), Belmiro de Azevedo confiava numa comunicação social independente e que não podia, nem devia, reflectir a visão que o dono tinha do mundo. E só um espírito muito aberto aceita isto. Os tempos evoluíram entretanto. Mas nem é preciso dizer como foi importante para uma jornalista como eu ter tido estes contactos, ainda que breves, com o engenheiro Belmiro de Azevedo.

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