Lisboetas da noite

Verão Danado, de Pedro Cabeleira, é um filme sobre uma juventude noctívaga em transe permanente. Um trajecto de descoberta de Lisboa entre a inocência e clandestinidade.

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O filme arrasta o espectador para um vórtice onde “perdição” e “salvação” mal se distinguem, onde a juventude, o ter-se 20 anos, é uma coisa em suspensão
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Verão Danado é a longa-metragem de estreia de Pedro Cabeleira, realizador acabado de sair da escola de cinema. Mais do que um filme de juventude — o olhar é bastante amadurecido — é um filme da juventude, da juventude urbana ou da juventude a descobrir os prazeres perigosos de uma cidade, Lisboa. Em “mosaico”, com dezenas de personagens que entram e saem, aparecem, desaparecem e voltam a aparecer, Verão Danado casa um realismo muito imediato e muito autêntico com longas cenas em transe: as festas, escuras e repetitivas, sob a influências de substâncias várias e marcadas pelos ritmos — pam pam pam — da electrónica. Não tem nenhuma lição de moral a propor, mas também não tem nenhuma celebração especial a fazer: fica ali, a arrastar o espectador para um vórtice onde “perdição” e “salvação” mal se distinguem, onde a juventude, o ter-se 20 anos, é uma coisa em suspensão. A idade adulta pode esperar — e toda a ambiguidade desta asserção como que resume o espírito do Verão Danado.

O filme começou a nascer ainda na escola de cinema. Pedro Cabeleira conta-nos que começou de uma frase dita por um dos seus professores, João Maria Mendes: “que nós, na minha geração, tínhamos sorte, porque era muito mais fácil ter acesso ao equipamento para fazer filmes, e que para fazer filmes bastava olhar para as coisas que estão à nossa volta”. Pedro, que na escola já tinha feito alguns trabalhos “num registo completamente diferente deste”, viu aí a possibilidade encontrar o “seu” cinema: “Comecei a pensar numa coisa que fosse autêntica mas que também fizesse sentido em grande, numa tela”. A ideia, ao princípio, já era estrutural: “Pensei num filme em cinco grandes blocos, que mostrassem o que é uma festa, o que é uma desilusão amorosa, o que é estar a jogar à bola com os amigos”.

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A gestação foi longa, o argumento começou a ser desenvolvido no princípio de 2014, criando as personagens com a colaboração de uma série de actores da escola que Pedro estava interessado em filmar, a rodagem decorreu entre meados desse ano e o princípio do ano seguinte, e depois a pós-produção foram praticamente dois anos (o som só ficou pronto em 2017, ano em que o filme principiou a sua carreira, seleccionado para o Festival de Locarno). “Acho que o filme ganhou com este processo tão longo, porque quando escrevi o argumento era uma coisa, quando fui filmar já era um bocadinho diferente, e depois a montar ainda mudou mais um bocadinho”.

Mudou o quê? “Eu tinha 100 horas de material bruto, havia muito mais micro-narrativas, quase todas as personagens tinham uma história só delas, as cenas das festas eram ainda mais extensas, e o tom era um bocado mais moralista”. Sobretudo, mudou a estrutura: “A minha primeira ideia era fazer um ‘fluxo de consciência’, a partir do olhar subjectivo do protagonista, com avanços e recuos temporais, mas percebi rapidamente que os blocos perdiam energia assim, e que era fundamental a restituição do tempo, fazer passar a extensão temporal”. Notamos que uma das coisas peculiares da estrutura de Verão Danado, e do seu tratamento da narrativa e das cenas das festas, é ela ter qualquer coisa de “filme porno”, onde os fragmentos narrativos são muito mais curtos do que as longas sequências de “acção” (aqui, mais a dança e o torpor do que o sexo). Pedro ri-se e concorda: “Sim, percebo isso, é verdade, o protagonista aqui por vezes é só o pretexto para o que num porno seria uma cena de café ou alguém a ir ao médico, a fazer a ligação para o que realmente interessa”.

O protagonista, que existe dentro duma galáxia de personagens, que chegam às vezes só para o tempo duma cena, cria no espectador a sensação de que pode desaparecer a qualquer instante, ser trocado por outras personagens. A propósito disto, Pedro fala de descobertas literárias coincidentes com o arranque da preparação do filme: “Estava a começar a ler o Pynchon e o Foster Wallace, e os livros deles, sobretudo do Foster Wallace, são longuíssimos onde praticamente não há protagonistas mas também não há personagens secundários, toda a gente é tratada da mesma maneira, não há personagens para encher nem só para fazer ‘paisagem’, e isso interessou-me, fazer um filme onde não houvesse ‘persongens-paisagem’”.

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O realizador Pedro Cabeleira acabou de sair da escola de cinema Rui Gaudêncio

Apesar do ambiente urbano do filme, entre as “cavernas” nocturnas das discotecas e a luz feroz das madrugadas de Verão, o começo é quase em “trompe l’oeuil”. Estamos no campo, há um avô a falar dos seus limoeiros, uma reunião na casa de família algures no interior. Nada, durante os primeiros quinze/vinte minutos, parece anunciar o essencial do seu ambiente. “Foi uma maneira de dar o ‘choque térmico’ da descoberta de uma grande cidade, que é sempre grande para quem vem do interior para Lisboa”. É tudo diferente, “as dinâmicas, as relações entre as pessoas”. O filme corresponde “a um processo de descoberta, a um deslumbramento”, porque é completamente diferente “filmar isto como descoberta ou como rotina” — o que seria a rotina, já noutro momento, posterior ao do período coberto pelo filme.

Há um reflexo autobiográfico, evidentemente: “o protagonista não sou eu, as reacções dele não são as minhas reacções”, mas Verão Danado é um eco do percurso do próprio Pedro, que tinha 18 anos quando deixou o Entroncamento para vir estudar para Lisboa. “Só podia filmar assim, nunca poderia filmar como um lisboeta de gema”. Dá exemplos: “É um bocado estúpido dizer isto assim, mas no Entroncamento não conhecia nenhum gay, por exemplo. Se havia não se revelavam, punham-se à margem. Assim como as festas eram completamene diferentes, muito mais em torno da música da Cidade FM e do álcool.” Essa descoberta deslumbrada tinha que ser reflectida no filme: “A quantidade de coisas que se pode fazer em Lisboa é esmagadora, foi por isso que quis fazer um filme de Verão em que não há nenhuma cena na praia”. E sobre aquela introdução, acrescenta: “Eu queria muito filmar o meu avô”.

Filmar o deslumbramento, como ele diz, mas sem passar julgamento, sem uma perspectiva moralista, ainda que não necessariamente jubilatória. Mas confessa “que ao princípio a ideia era mais moralista, o final seria o encontro entre o protagonista e um homem mais velho e um bocado acabado, que podia ser o seu reflexo futuro”. Mas foi uma cena que nem chegou a filmar. E volta a citar Foster Wallace: “Vi uma entrevista dele em que ele mencionava como o Blue Velvet do Lynch lhe tinha mudado a perspectiva: ele era e achava que devia ser muito crítico mas perante esse filme percebeu que a missão do escritor ou do artista deve ser menos criticar a realidade do que aceitá-la, aceitar as coisas que existem, encontrar a beleza das coisas que existem, e honrá-las”. Esta ideia fez todo o sentido para Pedro: “É claro que é muito difícil abandonar um ponto de vista crítico, ele existe sempre em maior ou menor medida, mas gostei muito da ideia de encontrar e honrar a beleza das coisas que existem”.

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Outro aspecto curioso, mencionamos, é o facto de Verão Danado, mais do que um filme “sem referências” ou “citações”, ser relativamente mudo em relação à dieta cinematográfica e aos gostos do seu autor. “Procurei abandonar qualquer tipo de colagem. As coisas que fiz na escola eram muito assim, muito próximas daquilo de que gostava como espectador, até cheguei a copiar literalmente uma cena do The Master do Paul Thomas Anderson”. Aqui quis gozar a espontaneidade de ter uma câmara na mão e reagir, aos actores e aos acontecimentos. “Descobri que gosto mesmo é de filmar olhares, reacções, filmar os actores que estão a ouvir mais do que os que estão a falar”. E remata: “de que é que eu gosto? Daquilo que toda a gente gosta: do Kubrick, do PTA, do Welles, do Le Trou do Jacques Becker...”.

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