O caso EMA/Infarmed: pôr as coisas (e as agências) no lugar

A deslocalização do Infarmed tem tudo para reeditar, sem sentido, uma luta Porto-Lisboa que, nos últimos anos, ambas as cidades, muito sabiamente, foram capazes de evitar.

1. A propósito da candidatura a sede da Agência Europeia do Medicamento foram ditos e escritos dislates e disparates sem fim. E num reflexo quase “pavloviano”, foi ainda tomada – melhor, anunciada – a decisão de deslocar o Infarmed de Lisboa para o Porto. Também esta medida deu origem a discussões apaixonadas. Julgo que é preciso pôr cada coisa no seu lugar – e digo-o, por mais que isso se tome por sobranceria, com conhecimento de causa. Já que não se pode pôr as agências no lugar em que cada um gostava de as ter e ver, ao menos, que se possa pôr as coisas na devida ordem.

2. A primeira coisa que convém recordar – e de que já ninguém se lembra – é que a mudança da candidatura de Lisboa para o Porto foi conhecida numa tarde de sábado: a tarde de 17 de Junho de 2017. Na tarde desse dia fatídico – o dia dos incêndios de Pedrógão Grande –, ainda antes de se ter qualquer noção da enorme tragédia que já então lavrava, foi feito o anúncio de que se ponderava trocar Lisboa pelo Porto. O anúncio não foi feito pelo Governo nem pelo ministro da Saúde nem pelo presidente da Câmara do Porto ou até de Lisboa. A novidade foi dada, em primeira mão, pelo candidato socialista à Câmara do Porto. Coisa bizarra e estranha, altamente condenável, mas compreensivelmente logo esquecida pelo enorme drama que o país passou a viver.

3. Na conjuntura de luto, todos olvidaram as contradições do Governo na discreta escolha de Lisboa para cidade candidata. O primeiro argumento era o de que Lisboa tinha a grande vantagem de já ser a sede da autoridade nacional do medicamento, o Infarmed. Ninguém notou, mas a sede holandesa da vitoriosa Amesterdão está em Utrecht. E a sede italiana da finalista Milão está em Roma. Como se vê, era um grande argumento. O segundo não era menos efabulado: só assim Portugal poderia ter uma escola europeia (naturalmente em Lisboa). A escola europeia britânica não está em Londres, onde hoje tem sede a EMA; está em Cullham. E a escola europeia italiana não está em Milão, está em Varese. Como a espanhola, está em Alicante; não em Barcelona, que era a candidata espanhola. Estes dois argumentos foram repetidos pelo primeiro-ministro, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e pela então secretária de Estado dos Assuntos Europeus (a maior entusiasta da ideia). Eram falsos, rotundamente falsos. Mas hoje é grande o coro dos que acha que se a candidata fosse Lisboa, Portugal poderia ter ganhado por causa deles.

4. É penoso ouvir gente tão bem informada – como João Cravinho ou Pedro Adão e Silva – que só Lisboa teria condições de ganhar. Ou outros, como Marques Mendes, virem falar numa “grande derrota” na escolha do Porto. Vou dizer, pela enésima vez, sem qualquer esperança de ser escutado: Lisboa nunca poderia ganhar pela simples razão de que já alberga duas agências europeias daquela tipologia (embora muito menos relevantes, é certo). Nenhuma cidade europeia, tirando Bruxelas e o Luxemburgo (que têm estatuto de cidade capital) tem mais de duas sedes de agências europeias. Nenhuma, repito. Talvez ninguém saiba, pois estávamos na azáfama das autárquicas, mesmo antes dos votos. Mas quando a Comissão Europeia fez o seu relatório técnico, em que considerou que o Porto reunia todas as condições para o efeito, identificou como ponto mais frágil precisamente o facto de já existirem duas agências em Portugal. Logo, por coincidência, ambas localizadas em Lisboa. Só isto era suficiente para condenar Lisboa à partida. Diga-se, aliás, de passagem, continuo absolutamente convicto de que foi a ciência e consciência deste obstáculo inultrapassável que fez o Governo recuar e mudar de cidade a meio da corrida. Sabiam que Lisboa estava derrotada, nada havia a perder em tentar uma alternativa.

5. É também lamentável tanta gente julgar que o Porto não reunia condições para receber a EMA. De resto, não ter percebido que o Porto, num mês, preparou uma candidatura credível e atractiva, que ficou bem acima do meio da tabela, diz já de si algo. É preciso não conhecer a cidade nem a região, nem o seu tecido universitário e industrial, nem o seu cosmopolitismo (aliás, longevo), nem a sua (essa sim, recente) capacidade infraestrutural. Poderá dizer-se que, se não tivesse já duas agências, Lisboa teria mais condições. Nada a obstar. Aí, o centralismo lisboeta só pode queixar-se de si. Se o Observatório da Droga estivesse em Braga e a Agência de Segurança Marítima em Faro – cidades que podiam perfeitamente acolher estas instituições –, talvez Lisboa tivesse tido uma chance. Mesmo assim, sempre sujeita à objecção de que Portugal tinha já duas sedes e sempre com o défice de argumentos políticos que nesta contenda se jogavam e que quem conhece bem a diplomacia europeia sabe o que valem.

6. É finalmente aqui que entra a deslocalização do Infarmed. Tal como foi anunciada carece de racionalidade e pode ser contraproducente. Tem tudo para reeditar, sem sentido, uma luta Porto-Lisboa que, nos últimos anos, ambas as cidades, muito sabiamente, foram capazes de evitar. E matar até um impulso descentralizador mais geral. Já o escrevo há muitos anos, aliás seguindo bom critério que aprendi com Valente de Oliveira ou Vital Moreira: as agências públicas de vocação nacional têm de ser espalhadas pelo país. Comece-se pelas novas, estude-se e planeie-se a distribuição paulatina e ordenada das restantes. Pense-se especialmente nos altos tribunais e nas agências de regulação. E não se comece pelo Porto, que, depois de Lisboa, é quem menos precisa, embora precise. Lisboa carece de ser aliviada e libertada do atafulhamento institucional, que a atrofia e hipertrofia. Pelo caminho que leva, acaba como Atenas! Esclarecida a posição de que a mudança do Infarmed, neste contexto e por estas razões, está inquinada, só mais uma coisa para pôr no lugar. O Porto tinha (e tem) condições de excelência, em todos os domínios, incluindo o dos recursos humanos, para o acolher.

Sim e Não        

Sim. Pedro Rolo Duarte. Há pessoas com que não se aprende, cresce-se. Cresci com ele, só de o ler, ouvir e ver. A comunicação perdeu; a cultura nem sabe quanto. E ao sábado, fiquei sem hotel. Babilónia.  

Não. Dois anos de governo. O circo montado em torno dos dois anos de governo é mais um regresso da velha propaganda “socratista”, forçada e postiça. Costa tem perdido a mão, arrisca-se a ficar sem pé.

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