Mais de 16 milhões de euros de bolsas vêm para oito cientistas em Portugal

É a última leva de bolsas atribuídas pelo organismo de financiamento da ciência na Europa, criado em 2007. Desde então, vieram para Portugal cerca de 140 milhões de euros.

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Aly Song/Reuters

Ao todo, oito cientistas em Portugal acabam de saber que vão ter uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla em inglês), o que perfaz um bolo de 16 milhões de euros. As bolsas de consolidação, como são estas divulgadas esta terça-feira, são atribuídas a cientistas a meio da carreira (entre sete e 12 anos de experiência) e este ano premiaram um total de 329 cientistas na Europa, com cerca de 630 milhões de euros.

Sete das bolsas atribuídas a Portugal são para as ciências da vida, nomeadamente para quatro centros de investigação da área de Lisboa: a Fundação Champalimaud, o Instituto de Medicina Molecular (IMM), o Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) e o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), os dois últimos em Oeiras. Cada bolsa vale entre dois e cerca de 2,5 milhões de euros. Há também uma bolsa na área das ciências físicas e engenharias para a Universidade do Minho, no valor de dois milhões de euros.

“É com grande satisfação que vejo os mais recentes resultados dos investigadores em Portugal nas bolsas do ERC”, diz em comunicado Carlos Moedas, comissário europeu para a Investigação, Ciência e Inovação. “Fico ainda mais contente ao verificar que cinco são investigadoras”, acrescenta o comissário, que considera os vencedores “exemplos da qualidade científica em Portugal”.

As novas bolsas vão para 22 países na Europa. O Reino Unidos (60 bolsas), Alemanha (56), França (38) e os Países Baixos (25) receberam o maior número. E há investigadores de 39 nacionalidades, sendo a maior parte  alemães (55), italianos (33), franceses (32) e britânicos (31). Para este concurso, o ERC avaliou 2538 propostas, sendo financiadas 13% (329). No caso de Portugal, segundo o ERC, a taxa de sucesso foi de 20%, estando assim acima da média europeia.

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“O financiamento irá encorajar estes cientistas a meio da carreira a explorarem ainda mais o desconhecido e a desenvolverem ideias mais ousadas por sua iniciativa”, considera no comunicado Jean-Pierre Bourguignon, presidente da ERC, notando que isto ajudará a Europa a responder a vários desafios e a melhorar a vida dos seus cidadãos “se as políticas adequadas forem adoptadas”.

Criado em 2007 pela União Europeia, o ERC está agora ao abrigo do programa de financiamento Horizonte 2020. Além das bolsas de consolidação, há as bolsas de arranque (para cientistas doutorados no máximo há sete anos, para que criem o seu grupo de investigação), assim como bolsas avançadas, bolsas para prova de um conceito e bolsas de sinergia. Até agora, incluindo as novas bolsas, já houve ao todo 82 bolsas do ERC para cientistas estabelecidos em Portugal, o que corresponde a 140 milhões de euros — entre os 14.400 milhões atribuídos no total pelo ERC. Eis os últimos vencedores.    

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Luísa Figueiredo iMM | João Lobo Antunes

O parasita que nos põe a dormir

Luísa Figueiredo, do IMM, dedica-se ao estudo do parasita da doença do sono (o Trypanosoma brucei), transmitido em vários países da África subsariana pela picada de moscas tsé-tsé e que causa sonolência permanente e apatia. Em Maio do ano passado, a equipa de Luísa Figueiredo publicou na revista Cell Host & Microbe uma descoberta surpreendente: o reservatório principal do parasita é o tecido adiposo, e não o sangue e o cérebro, como até aí se pensava. Desde o início da infecção, os espaços entre as células da gordura (adipócitos) são, afinal, o principal esconderijo dos parasitas. Na fase terminal da doença, os doentes têm perda de peso excessiva e é isso que Luísa Figueiredo quer agora estudar melhor com os 2,2 milhões de euros da bolsa do ERC, aprofundando a ocupação deste tecido pelo parasita e a sua contribuição para a perda de peso. “Se antes se pensava que o parasita existia em grande quantidade no sangue e em menos quantidade no cérebro, os novos resultados vêm alterar esta ideia. E podem explicar a enorme perda de peso que costuma estar associada a esta doença”, dizia na altura ao PÚBLICO. “São-nos dadas condições para explorarmos questões difíceis e arriscadas, mas potencialmente muito inovadoras”, considera agora sobre o novo financiamento.

Por que é diferente o comportamento sexual das fêmeas

Susana Lima, da Fundação Champalimaud, vai receber dois milhões de euros para desvendar a forma como hormonas reprodutivas afectam o cérebro e controlam o comportamento sexual das fêmeas – um trabalho que desenvolve em fêmeas de ratinhos. “Uma das perguntas mais antigas e interessantes na neurociência e no comportamento animal é tentar perceber como é que o mesmo indivíduo pode ter respostas opostas ao mesmo estímulo, dependendo do seu estado interno”, conta ao PÚBLICO. “No nosso caso, queremos perceber como é que os circuitos neuronais levam a que a fêmea tenha um comportamento de aceitação e cópula em relação ao macho, se estiver na ovulação, e de rejeição quando não está a ovular.”

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Susana Lima (ao centro) com Joseph Paton (à esquerda) e Michael Orger (à direita) Tor Stensola

Como tal, vão ser estudados circuitos neuronais usados para responder a estímulos hormonais. A área do cérebro analisada vai ser o hipotálamo ventromedial, onde há receptores para o estrogénio e da progesterona, dois tipos de hormonas femininas. “Estudamos o efeito combinado dessas duas hormonas nessa mesma área”, frisa a investigadora, dizendo que se irá usar uma combinação de técnicas ópticas e genéticas para identificar os circuitos neuronais.

E nos humanos? “Há algumas indicações de que o comportamento social e sexual das mulheres em relação ao sexo oposto também é alterado”, refere a investigadora. Contudo, salienta que existem diferenças entre as respostas das mulheres e das fêmeas de ratinho. “[Este estudo] poderá ser aplicado em humanos. Mas, neste momento, não é o intuito.”

Sendo a primeira vez que Susana Lima recebe uma bolsa do ERC, o que sente? “É difícil de descrever, pois são várias coisas ao mesmo tempo. Um alívio enorme por saber que podemos continuar a fazer os nossos projectos, validar as perguntas, hipótese e metodologia para atingir os nossos objectivos; e um orgulho na minha equipa por ter produzido os dados que nos levaram este projecto”, responde.

Atrás de cada neurónio do peixe-zebra

Também da Fundação Champalimaud, Michael Orger estuda a actividade de cada neurónio do cérebro da larva de peixe-zebra, enquanto ela se movimenta e reage a diferentes imagens. “Quando o peixe vê os objectos em movimento, tem de tomar uma decisão rápida – é um predador, comida ou um peixe companheiro? Baseado nisto, tem de decidir que tipo de movimento deve fazer: escapar, caçar, explorar, nadar ou virar à esquerda ou à direita ”, explica ao PÚBLICO o britânico. Depois, através de estímulos artificiais num computador, os investigadores observam a rede da actividade neuronal em diferentes áreas do cérebro do peixe-zebra. “Podemos ver como diferentes regiões do cérebro são capazes de categorizar diferentes partes da cena visual, seleccionar e configurar possíveis acções.”

E por quê este peixe? Como tem um cérebro transparente e mais pequeno do que o humano, pode-se ter uma visão global sem métodos invasivos, assim como ver o que está a acontecer em cada neurónio, usando técnicas de ponta para visualizar essa actividade. Já em 2014, a equipa de Michael Orger publicou um artigo científico na revista Neuron, em que descrevia os primeiros mapas da actividade neuronal na totalidade do cérebro do peixe-zebra em acção. “Para percebermos como é que o cérebro funciona, é imperativo conseguirmos registar a actividade dos neurónios e, ao mesmo tempo, relacionar essa actividade com o comportamento do animal”, explicava Michael Orger à agência Lusa na altura.

Agora, com os dois milhões de euros da bolsa do ERC, Michael Orger diz, em comunicado, que vai ter “uma visão sem precedentes, à escala da célula, dos circuitos que transformam a informação visual em acção”. Tudo isto tem a finalidade de perceber como o nosso cérebro nos permite escolher as acções correctas baseadas na nossa experiência sensorial. “Estudando sistemas simples como o do peixe-zebra, queremos identificar os princípios organizacionais que irão ajudar-nos a perceber como cérebros mais complexos, como o nosso, estão a trabalhar.”

Como passa o tempo para o cérebro

Da Fundação Champalimaud há ainda um terceiro premiado: Joseph Paton, que nos últimos anos tem feito com a sua equipa avanços sobre como é que o cérebro estima a passagem do tempo. O norte-americano descobriu como o tempo é codificado em determinados circuitos neuronais e identificou um conjunto de neurónios que controla a percepção subjectiva do tempo em roedores – trabalhos publicados em 2015 na revista Current Biology e em 2016 na revista Science. E que em Maio deste ano já lhe tinham valido a atribuição de cerca de dois milhões de euros por uma parceria de filantropia entre o Instituto Médico Howard Hughes (EUA), a Fundação Bill e Melinda Gates (EUA), o Wellcome Trust (Reino Unido) e a Fundação Calouste Gulbenkian (Portugal), para continuar a aprofundar estes mecanismos. Como é que os sinais gerados que informam o cérebro sobre a passagem do tempo são depois transformados numa acção?

Com os novos dois milhões de euros, Joseph Paton sublinha, em comunicado, que vai continuar a dissecar os mecanismos através dos quais sinais gerados internamente, como os que informam o cérebro sobre a passagem do tempo, são usados para promover comportamentos num modelo animal. Saber mais sobre este processo, nota, é “crucial para descobrir como o cérebro gera os sinais internos dinâmicos subjacentes aos actos cognitivos, como a aprendizagem e o pensamento”.  

Uma bactéria que combate vírus

Nos últimos anos, Luís Teixeira, investigador do IGC, tem estado interessado em compreender como é que os insectos interagem com micróbios, incluindo vírus, visto que muitas doenças virais são transmitidas aos humanos pelos insectos. Ora, Luís Teixeira descobriu que a bactéria Wolbachia, presente na maior parte das espécies de insectos, pode dar aos hospedeiros uma protecção contra os vírus. Actualmente, a bactéria está a ser usada em mosquitos para combater o vírus Zika e a febre de dengue.

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Luís Teixeira Sandra Ribeiro

“Esta bactéria é transmitida da mãe para a progénia. Nalgumas situações pode ser benéfica para o insecto, por exemplo quando dá protecção contra o vírus”, explica ao PÚBLICO Luís Teixeira. “Os níveis da bactéria têm de ser muito bem regulados. Se não cresce o suficiente, desaparece e não é transmitida para a próxima geração. Se cresce muito, acaba por afectar negativamente o insecto em que vive. E se este ficar muito doente, não se reproduz e a bactéria não é transmitida à próxima geração.”

Agora, Luís Teixeira recebe dois milhões de euros para perceber como é que os níveis da bactéria Wolbachia são regulados e como ela confere protecção contra vírus em insectos, nomeadamente caracterizando tanto os genes da bactéria como do hospedeiro envolvidos nesta interacção. A mosca-da-fruta e os vírus dela serão usados na investigação.

“A protecção contra vírus pode ser útil do ponto de vista prático: mosquitos transmissores de vírus humanos que tenham a Wolbachia também estão protegidos contra vírus. Se os mosquitos não forem infectados com vírus, também não os transmitem”, explica o investigador. E sobre a bolsa, a sua primeira, diz: “Permite realizar experiências mais arriscadas, mas potencialmente muito recompensadoras. A estabilidade financeira do laboratório que vem com a bolsa ERC é um factor particularmente importante no clima actual de financiamento da ciência em Portugal.”

A neurobiologia da obesidade

Igualmente do IGC, Ana Domingos quer continuar a estudar os mecanismos neurobiológicos subjacentes à obesidade.

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Ana Domingos Sandra Ribeiro

Em Abril deste ano, a sua equipa já tinha publicado, na revista Nature Communications, a descoberta de um mecanismo neuronal associado à obesidade. Tinha encontrado uma relação entre o tecido adiposo (o tecido gordo) e um conjunto de neurónios do sistema nervoso periférico (fora do cérebro). Em experiências em ratos, viu-se que estes neurónios que inervam o tecido adiposo têm um papel importante na degradação da gordura. Esses neurónios periféricos, quando são activados e ao libertarem uma substância que “comunica” com as células do tecido adiposo, queimam gordura. Se estes neurónios periféricos forem eliminados, como mostraram as experiências em ratos, sem que o seu cérebro fosse afectado, o processo de aumento de peso é acelerado. Este trabalho também valeu em Maio a atribuição a Ana Domingos de cerca de dois milhões de euros pela parceria de filantropia entre o Instituto Médico Howard Hughes, a Fundação Bill e Melinda Gates, o Wellcome Trust e a Fundação Calouste Gulbenkian.

Depois, em Outubro na revista Nature Medicine, juntou-se à equação da obesidade o sistema imunitário: a equipa descreveu o mecanismo de acção de um tipo de células do sistema imunitário (os macrófagos), que desempenha um papel na inflamação do tecido adiposo. Estas células imunitárias capturam um neurotransmissor (libertado por neurónios do sistema nervoso simpático, também fora do cérebro e no tecido adiposo) que induz a redução de massa gorda. “Estas células que descobrimos funcionam como aspiradores. Estão lá a aspirar o neurotransmissor que os adipócitos precisam de ver e sentir para começarem a perder gordura”, explicava então Ana Domingos.

Com os dois milhões de euros da bolsa ERC, a investigadora quer determinar os mecanismos moleculares que ligam o sistema nervoso simpático ao sistema imunitário e mapear as populações de neurónios que inervam os diferentes tipos de gordura. “Mapear as moléculas que governam a ligação entre o sistema nervoso e o tecido adiposo irá abrir caminho para novas terapias anti-obesidade”, diz agora.

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Mariana Gomes de Pinho Clara Azevedo/Ciência Viva

Vencer a resistência aos antibióticos

Já Mariana Gomes de Pinho, do Laboratório de Biologia Celular Bacteriana no ITQB, estuda a divisão celular da bactéria patogénica Staphylococcus aureus e os mecanismos que ela usa para resistir a várias classes de antibióticos. Em 2012, recebeu uma bolsa de arranque, que financiou o estudo sobre esta bactéria, uma das mais resistentes na União Europeia a múltiplos fármacos e uma grande preocupação da saúde pública.

Com os 2,5 milhões de euros do ERC agora atribuídos vai estudar a regulação do ciclo celular da Staphylococcus aureus. Pretende-se que este conhecimento ajude a tornar sensível essa bactéria que desenvolve resistência a antibióticos. Mariana Gomes de Pinho ainda criar ferramentas para procurar antibióticos com novos mecanismos de acção e entender como funcionam esses medicamentos a nível molecular na bactéria.  “O financiamento do ERC é, sem dúvida, uma das melhores iniciativas europeias na área da ciência, dando aos investigadores financiamento num horizonte temporal que lhes permite desenvolver projectos de maior impacto”, considera Mariana Gomes de Pinho.

Criar tendões no laboratório

No Norte do país, Manuela Gomes, do grupo de investigação 3B’s (Biomateriais, Biodegradáveis e Biomiméticos) da Universidade do Minho, teve uma bolsa de dois milhões de euros para abordar novas tecnologias de engenharia de tecidos. “Trabalho na interface entre desenvolvimento de materiais e a sua combinação com células, em especial células estaminais, de tecido adiposo, para [criar] substitutos de tecidos do sistema músculo-esquelético, em particular osso e cartilagem e, mais recentemente, para tendões e ligamentos”, explicava à Lusa em 2013, quando foi distinguida pela Sociedade Internacional de Engenharia de Tecidos e Medicina Regenerativa pelo trabalho com materiais para substituição de tecidos do corpo humano.

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