“Espanta-me que a Câmara de Lisboa não tenha problema em perder o Infarmed”

Já há instituições a tentar recrutar trabalhadores do Infarmed e, se a transferência para o Porto avançar, o organismo perderá "os melhores", afirma a presidente do Infarmed, Maria do Céu Machado.

O presidente da Câmara do Porto diz que a cidade é um polo de saúde e que podia agregar os serviços do Infarmed.
Acho que o problema está a ser visto de forma errada. Se o Infarmed fosse no Porto e houvesse, de repente, uma intenção de o colocar em Lisboa, a nossa reacção seria a mesma. O problema é mudar o Infarmed na sua estrutura e na sua actividade, e não ir para uma cidade ou outra. Quando se muda uma estrutura como esta, o processo de mudança tem de ser liderado pela própria instituição e pelas pessoas que lá trabalham, de modo a não haver fracturas. 

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O presidente da Câmara do Porto diz que a cidade é um polo de saúde e que podia agregar os serviços do Infarmed.
Acho que o problema está a ser visto de forma errada. Se o Infarmed fosse no Porto e houvesse, de repente, uma intenção de o colocar em Lisboa, a nossa reacção seria a mesma. O problema é mudar o Infarmed na sua estrutura e na sua actividade, e não ir para uma cidade ou outra. Quando se muda uma estrutura como esta, o processo de mudança tem de ser liderado pela própria instituição e pelas pessoas que lá trabalham, de modo a não haver fracturas. 

Tem ideia de quando ficará concluído o processo de avaliação da transferência do Infarmed para o Porto?
Não. O ministro disse-me que até Março haveria avaliações externas. Eu penso que tem que ser mais rápido. Nós já temos, tivemos ontem [quinta-feira], tentativas de recrutamento de trabalhadores nossos, seja de públicos seja de privados, inclusivamente do Porto. O problema é que somos muito pouco atractivos do ponto de vista salarial. Tenho farmacêuticos a ganhar pouco mais de mil euros. A indústria farmacêutica paga três vezes mais ou mais. Numa situação de indefinição prolongada, vão sair trabalhadores, os melhores.

E já antecipa outras implicações, mesmo do ponto de vista financeiro, não é?
Há ainda o problema da perda de reacção imediata para dar resposta a situações de urgência, como rupturas de medicamentos. Isto também implica uma diminuição da nossa competitividade face aos Estados-membros. É preciso ver ainda que temos cerca de 300 peritos em várias comissões, como a da avaliação de medicamentos, tecnologias da saúde, farmácia e terapêutica, farmacopeia portuguesa. Dos 300 peritos, cerca de 40% são de fora de Lisboa. Por outro lado, temos alguma descentralização, sete unidades regionais de farmacovigilância e vamos criar mais duas em 2018 nos Açores e Madeira.

Porque é que, na sua opinião, a Câmara do Porto está tão interessada nesta transferência?
Até me espanta não haver outras câmaras que queiram entrar na corrida. Espanta-me também que a Câmara de Lisboa não tenha problema em perder o Infarmed. Se calhar o Infarmed não é importante para a Câmara de Lisboa.

Criticou a transferência da candidatura a sede da EMA de Lisboa para o Porto e foi muito criticada por isso. Arrependeu-se?
Eu não quis dar uma resposta emocional. Isto tem um aspecto emocional e outro racional. Eu não tive reacção nem respondi directamente. Agora, como profissional de saúde, conhecendo o senhor ministro e o seu historial, não acredito que, se ele tiver a noção exacta de quais são as implicações financeiras, económicas, sociais e de  saúde pública, da saída do Infarmed de Lisboa, tenho a certeza que olhará para essas implicações e que a decisão política será tomada com base nessas  implicações. É por isso que não estou especialmente ansiosa, porque confio no senhor ministro.

Se a transferência se concretizar nos moldes anunciados, demite-se ou vai para o Porto?
Vamos pôr a pergunta ao contrário. A pergunta é: considera que o Infarmed tem condições para sair de Lisboa sem prejudicar gravemente a instituição, o acesso à inovação e a saúde da população? Acho que não tem condições sem prejudicar gravemente. Acho que o Governo e o ministro da Saúde, tendo consciência destas condições, tomarão a atitude que será a mais correcta.

Como foi para si o processo da doença e da morte do seu marido (João Lobo Antunes)?
Ele falava abertamente da doença e esteve lúcido até à véspera de morrer, mas foi uma evolução com algum sofrimento e com muita consciência. Para mim foi muito complicado. Faz-me uma enorme falta, mas faz falta ao país inteiro. Às vezes penso: devia estar aqui o João Lobo Antunes para me dar a opinião sobre o que achava disto tudo.

O que acha que o seu marido ia pensar deste processo?
Acho que ele ia ficar no mínimo irritado. Porque tudo o que o João Lobo Antunes dizia ou fazia era pensado, reflectido. Se o convidassem para uma conferência, da mais importante internacional à mais pequena nacional numa paróquia, preparava-se da mesma maneira. Comprava livros, ia à Internet, lia tudo sobre o assunto e depois escrevia. Era tudo preparado e reflectido e por isso ele odiava a precipitação e a surpresa.