Os enjeitados da “geringonça”

Os trabalhadores independentes não são empresas em corpo de gente. São trabalhadores mesmo.

Uma amiga, escritora e jornalista independente, vai ser mãe daqui a um par de meses. Encontrei-a no dia em que tinha ido à Segurança Social e acabara de ser informada que não teria direito a qualquer subsídio parental por se encontrar a pagar uma dívida à Segurança Social ao abrigo de um acordo prestacional. As suas prestações estavam em dia, mas a conclusão era inapelável. Estranha maneira de entender os primeiros meses de vida de uma nova cidadã nacional: amarrá-la a uma dívida da mãe à segurança social, sim, mas a ser paga em dia ao abrigo de um acordo com o Estado.

Este não é o único caso em que os trabalhadores independentes têm direito a menos direitos do que os trabalhadores por conta de outrem. Não há subsídio de férias, o que não é de estranhar porque muitas vezes se trata de trabalhadores que não têm férias. O subsídio de doença dura menos tempo e a sua atribuição é mais burocrática. O subsídio de desemprego só é atribuído se o trabalhador estiver dependente em mais de 80% dos seus rendimentos de uma única empresa.

E não esqueçamos: todos estes “direitos a ter pouco direito” estão ao alcance do cidadão trabalhador independente que paga, em geral, uma contribuição de 29%, três vezes maior para a Segurança Social do que o trabalhador por conta de outrem.

É neste contexto que se pode agora fazer a autópsia do que foi o grande erro político do Orçamento de Estado 2018, quando o Governo anunciou sem aviso que os trabalhadores independentes iriam pagar muito mais imposto porque o chamado regime simplificado de declaração ao fisco passaria a ser um regime tão complicado que não consegue ser cabalmente explicado aqui, mas que dependeria da apresentação de despesas de trabalho com que pelo menos alguns dos trabalhadores independentes (os chamados “falsos recibos verdes”) teriam sempre muita dificuldade em cumprir.

Após as primeiras reações indignadas, o Governo e os partidos que o apoiam voltaram a sentar-se à mesa. Decidiram então que as alterações que na primeira proposta penalizavam os trabalhadores independentes que ganham acima de 1600 euros (em 12 meses) passaram a penalizar apenas os trabalhadores independentes que ganham acima de 2500 euros por mês. Esta nova fasquia parece fazer sentido quando pensamos que 2500 euros é bastante dinheiro — três vezes o salário mediano em Portugal. Mas faz menos sentido quando pensamos que, após a contribuição para a Segurança Social e os impostos, o rendimento líquido do trabalhador independente será pouco mais do que metade desses 2500 euros.

Mas a incompreensão em relação ao trabalhador independente vai bem mais longe do que estes cálculos sugerem. É uma incompreensão categórica, mais do que de grau. Aqui há uns anos, nos EUA, alguns juízes decidiram que as empresas deveriam ser tratadas como pessoas e ter os mesmos direitos que as pessoas. Em Portugal, parece que alguém decidiu implicitamente que os trabalhadores independentes deveriam ser tratados, não como trabalhadores, mas como empresas: ter a contabilidade tão complicada como a de empresas, ser tratado nas finanças ou na segurança social como se dispusessem de uma assessoria jurídica profissional e sofrer aumentos de impostos quando os trabalhadores por conta de outrem com o mesmo nível de rendimentos usufruem (e bem) de descidas nos impostos.

Só que os trabalhadores independentes não são empresas em corpo de gente. São trabalhadores mesmo. Alguns subjugados pela fraude que são os falsos recibos verdes. Outros trabalhando por profissão ou vocação em áreas onde o trabalho independente mais faz sentido: tradutores, repórteres free-lance, programadores, artistas, cuidadores, prestadores de serviços vários.

É uma pena ver que a "geringonça" não tem por eles a mesma compreensão que tem pelos trabalhadores do Estado ou do privado — as duas únicas categorias em que as esquerdas tradicionais parecem dividir o mundo do trabalho hoje. Uma desnecessária e lamentável falha de solidariedade num exercício orçamental que, na maioria dos seus outros aspectos, é globalmente positivo.

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