Saindo da infância, espreita-se já o porno

Ao trabalho da dupla André Santos e Marco Leão o Porto/Post/Doc faz justa homenagem: uma integral. Tem sido uma década a habitar a intimidade. No momento em que esta bolha de ambiente rarefeito se deixa corromper: vem aí a ironia, o sexo, vem aí uma longa-metragem.

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Espreitámos Self Destructive Boys, a nova longa da dupla que se estreará em 2018: um porno gay com actores hetero e uma floresta — e um filme irónico Rui Palma
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Espreitámos Self Destructive Boys, a nova longa da dupla que se estreará em 2018: um porno gay com actores hetero e uma floresta — e um filme irónico Rui Palma
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Espreitámos Self Destructive Boys, a nova longa da dupla que se estreará em 2018: um porno gay com actores hetero e uma floresta — e um filme irónico Rui Palma
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Espreitámos Self Destructive Boys, a nova longa da dupla que se estreará em 2018: um porno gay com actores hetero e uma floresta — e um filme irónico Rui Palma

Não está finalizada a nova curta-metragem de André Santos e Marco Leão, mas espreitámos essa divertida ficção da rodagem de um porno gay com actores hetero — numa floresta, em que outro sítio poderia ser? Sentimos que uma bolha rebentou e que se espalham novos sabores. Por exemplo, uma indisfarçável ironia, auto-ironia mesmo, quando a câmara e o desejo dos realizadores lambem os corpos dos actores. Sexo, pornografia, obsessões lá de casa, aliam-se a aventuras novas, a “uma vontade de fazer um filme muito light, com outro tom: falar da masculinidade, da elasticidade sexual, mas uma coisa irónica, não tão densa nem tão pesada” como os filmes anteriores — este até está “inundado por diálogos”, como diz Marco, coisa nova na dupla.

Self Destructive Boys, assim se chama, estrear-se-á em 2018 e não está programado, porque ainda está a ser terminado, na retrospectiva integral do trabalho dos dois cineastas que o Porto/Post/Doc lhes dedica e agenda para dia 28 — seis filmes, A Nossa Necessidade de Consolo (2008), Cavalos Selvagens (2010), Infinito (2011), Má Raça (2013), Aula de Condução (2015), Pedro (2016), a que se acrescenta Go Get Some Rosemary, dos irmãos Safdie (dia 27), resultado de uma “carta branca” do festival. O Porto/Post/Doc chamou a esse programa Da Intimidade: André Santos e Marco Leão. Tem sido esse o sítio, a intimidade, onde as coisas aparecem e tem sido esse também, ao longo de uma década de trabalho, um modelo de produção. Algo que é tocado pela utopia — algo que às vezes precisa de ser despedaçado para a vida poder continuar.

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O cão Simão na sua prisão: Má Raça (2013)

Os dois títulos iniciais de André e Marco, A Nossa Necessidade de Consolo e Cavalos Selvagens — um em que homenageiam as mães em cenário de estufa de flores e aulas de hidroginástica (cada mãe espelha de forma tão evidente o seu filho que ele está no filme sem precisar de aparecer) e outro em que se filmam a si próprios num momento de crise de uma relação que na altura já tinha seis anos —, eram há dez anos experiências de respiração singulares e rarefeitas. Com o tempo, adquiriram um esplendor olímpico e memorialista — não por acaso, são dois filmes ocupados do princípio ao fim pela música. Neles, André e Marco falavam de onde vinham, fixavam a sua biografia. Olham agora para trás, quando, numa série de declinações, a estufa deu lugar a florestas e a um microclima com mães e filhos e a intimidade se aventura e desdobra pelo sexo: há muito que não vêem A Nossa Necessidade de Consolo e Cavalos Selvagens, não sabem como se aguentam (estão ainda melhores...).

A Nossa Necessidade de Consolo começou como um projecto de documentário, mas depois mudámos tudo. Queríamos filmar momentos das nossas mães, falámos com elas, foi um desastre, deitámos tudo fora. A minha mãe”, conta Marco, explicando o título, “dizia que quando trabalhava na estufa isso a acalmava em relação ao que sabia que ia acontecer no futuro” — uma avó acamada, um fim a aproximar-se.

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Infinito (2011) e Pedro (2016): uma relação inexpugnável, mãe e filho, e a sua destruição

“Já Cavalos... surgiu como um projecto fotográfico, como o Instagram da altura, um registo de rotinas, lavar os dentes, pequeno-almoço... Foi uma fase difícil da nossa relação. Quando o filme se estreou foi violento, a nossa intimidade exposta... Precisámos de recuo para começar a olhar aqueles momentos, perceber o que ali está.”

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Foi nessa altura que gente como o programador Miguel Valverde, o director de fotografia Rui Xavier ou, a trabalhar com eles no som, Adriana Bolito acreditou em Marco e André e fez Marco e André acreditar. Como amigos forneceram material técnico, ajudaram a aproximar o que faziam de um “projecto profissional”. “Sem eles poderíamos ter ficado pelo caminho. Os nossos filmes chegaram a algum sítio porque, por exemplo, o Miguel Valverde nos disse onde devíamos mostrá-los. Sem um festival de cinema que te programa, não existes.”

Sim, desde o início que são tocados por um sentimento de não pertencerem — sentem-se vindos de fora e por alguma razão, porque, por exemplo, não frequentaram a escola de cinema, sentem-se olhados dessa forma. Marco: “Sempre quis estudar cinema, mas quando chegou à altura achei que não era capaz, sou demasiado cauteloso” — tem licenciatura em Audiovisual e Multimédia, não era o que lhe interessava. André, o caótico, o barulhento e o bossy a precisar de alguém que o acalme, foi a primeira pessoa da família a ter licenciatura — em Publicidade e Marketing. Queria partilhar a emoção dos filmes de Pedro Costa, mas os amigos estavam numa onda diferente... “Quando decidi que queria ser artista, imagine-se a pressão.”

Uma década depois de terem começado, a sensação de marginalidade não acalmou, até se adensou. Querem ter “dinheiro para pagar às pessoas” que com eles trabalham. Têm 33 anos, continuam “a trabalhar no limite”, as curtas vão-se tornando mais longas, a desejar serem longas — depois a montagem torna-se o embate duro com a realidade.

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André Santos, o caótico e o bossy, e Marco Leão, o cauteloso Nuno Ferreira Santos

“A última curta, Self Destructive Boys, foi filmada em quatro dias, com cinco actores, é muito pouco tempo. Ao fim de dez anos continuamos a ser pobres a fazer filmes”, desabafa André.

Marco: “Uma curta faz-se em quatro dias, passa num instante, só voltamos a experimentar isso um ano depois. Com uma longa podemos passar mais tempo assim. As nossas curtas estão a ficar cada vez maiores, temos de cortar, cortar. Gostava de não fazer mais isso.”

Na altura em que são alvo desta retrospectiva, escrevem a primeira longa, Em Parte Alguma, “filme mais pessoal, não sendo biográfico, em termos de pulsões sexuais”. Vindos de um e de outro apanhamos estillhaços: há um tipo de 35/40 anos, professor de Educação Física no Norte, que desaparece para ir ter com um tipo mais velho num sítio recôndito, uma cabana no meio do nada — há uma floresta, claro. (Estão sempre a voltar a esses sítios, que lhes trazem “coisas boas”.)

Depois, o homem mais velho desaparece e o outro decide ficar à espera. “Move-se entre a cabana e a natureza, um espaço que não lhe pertence. É um filme sobre a incapacidade de estar sozinho.”

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A Nossa Necessidade de Consolo (2008)

Esta retrospectiva acontece então no “momento crucial” de um trajecto — sublinha Dario Oliveira, do Porto/Post/Doc, onde André e Marco participarão no projecto educativo do festival partilhando “ideias, métodos de trabalho, visões, influências e os filmes com um público específico que frequenta o ensino artístico”. Seguramente passará a outra(s) coisa(s), a infância terminou, adeus, avista-se o porno.

“Estamos constantemente a somar coisas e pessoas que conhecemos e que entram inevitavelmente nos filmes — numa personagem, por exemplo.” É assim que descrevem o trabalho de escrita de argumento, de que não têm formação: discutem uma cena, tomam notas, cada um dedica-se a ela, regressam para discutir e assim passam o trabalho um ao outro “Uma longa-metragem ainda vai ser mais assim. Queremos passar para um modelo mais complexo e manter o que somos.”

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Cavalos Selvagens (2010)

Não sabemos que lugar continuará reservado para as florestas e para o consolo. Por isso Da Intimidade: André Santos e Marco Leão, o ciclo, se estará inevitavelmente carregado com o sentimento de reconhecimento de território, relação umbilical que cada filme forja, também se dá a ver como perda, transformação, a inevitável — e é inevitável dizê-lo — corrupção.

Veja-se a passagem de Infinito (2011) a Pedro (2016). Algo que parecia inexpugnável é afinal transformado, naturalmente destruído: a relação entre uma mãe e o seu filho. No primeiro filme, o mais atmosférico, sensorial e abstracto dos realizadores, somos testemunhas da intimidade entre mãe e bebé, numa tenda na floresta, à luz da manhã. Começou como um workshop sobre uma memória de infância, é agora uma fábula. Ou um documentário sobre Adriana Bolito e a sua criança. Ou um dos cumes do ideal familar do cinema destes rapazes.

“Nunca estive naquela situação com a minha mãe”, conta Marco, “mas aquela imagem leva-nos para sítios... Filmámos tardes inteiras com a Adriana e o miúdo, fizemos parte da experiência íntima deles”.

Em Pedro algo se quebrou, é o adeus. O sexo e as suas histórias meteram-se no meio, sobram as saudades. Não se nota, nem pelo desencanto do filme, que foi a obra “difícil”, com problemas na rodagem, que mal começou teve de ser interrompida (o que acontece quando tem de se simular que é praia e Verão e é Novembro e chove). Meteram pelo meio Aula de Condução (2015) para aliviarem a frustração, para resistirem. Depois regressaram a Pedro, mas a angústia prolongou-se na montagem, o universo estava contra eles. André e Marco ainda estão em ressaca disso e decidiram que para a nova curta, Self Destructive Boys, pela primeira vez, não montariam o seu filme.

Pedro foi rodado em 2016, quando se deveria ter seguido a Má Raça. Este é o tour de force de 2013. Um filme em que utilizam um cão — chama-se Simão — como reflector que expande o que se passa em fundo. A relação entre uma mãe e uma filha assim se liberta. São mesmo mãe e filha e são as donas de Simão. É a casa delas, são as roupas delas, as situações delas. Má Raça é também um documentário sobre um ansioso cão e sobre a sua clausura entre esfregonas. É um filme-esponja.

“Adoro filmar cães, dá-me conforto tê-los na rodagem. Há coisas que trazem de verdadeiro ao filme. Simão parecia estar a representar. Criou uma simbiose connosco. E aquela casa é a prisão em que ele estava. O cão existe com aquela tensão nervosa. Quando nos juntávamos” — é Marco que conta — “fazíamos sessões em grupo, a falar dos nossos problemas, das nossas tensões. Criámos esta bolha para que elas ficassem confortáveis e se expusessem. O cão e as esfregonas eram reais. Para se conseguir estar com ele, havia esfregonas em todo o lado” para o conter.

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