“Fujam, fujam todos”, o paiol vai rebentar

O episódio aconteceu no meio das cheias de 1967, mas, perante a tragédia da morte de centenas de pessoas, ficou esquecido. Parte do material militar do Paiol do Carrascal explodiu quando a água chegou a ele. O pior foi evitado, mas a memória desses momentos de pânico deixou uma "ferida profunda"

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Tinha sido uma noite de tragédia. As chuvas violentas provocaram cheias que arrasaram com casas e deixaram centenas de mortos enterrados na lama nas zonas de Algés e Linda-a-Velha. De madrugada, quando, ainda aterrorizados pelos acontecimentos da noite, alguns tentavam começar a descansar, uma brutal explosão sacudiu toda a zona. Esta foi a segunda catástrofe a atingir o concelho de Oeiras em poucas horas – e a que ficou esquecida na história das trágicas cheias de 25 de Novembro de 1967, faz agora 50 anos.

Helena Abreu lembra-se muito bem dessa madrugada de domingo, dia 26 e, sobretudo, da madrugada de segunda-feira, dia 27. É que esta história – a da explosão do Paiol do Carrascal, em Linda-a-Velha, onde estava guardado armamento destinado à guerra em África – tem dois momentos: o da real explosão e, 24 horas depois, o da onda de pânico que se espalhou “quase até Cascais” e que levou os habitantes da zona a fugir sem destino certo, uns em direcção à praia de Algés, outros para o cimo dos montes.

Comecemos então pela madrugada de domingo, 26. A mãe de Helena tinha albergado em casa a família que vivia na cave, por causa das cheias. “Pelas cinco da manhã tínhamos conseguido deitar toda a gente e, quando começávamos a descansar, rebenta aquilo”, recorda. Só depois veio a saber o que se tinha passado e só agora, 50 anos depois, por curiosidade, conseguiu, num trabalho de historiadora amadora, reconstituir toda a tragédia, procurando notícias de jornais da altura, relatórios militares e recolhendo as memórias de outros moradores de Algés. 

Seriam umas quatro da madrugada quando começaram a surgir fumos no Paiol do Carrascal, possivelmente devido à entrada da chuva que terá chegado a algum do armamento. Na reconstituição que fez – e que apresentou este sábado no colóquio Rios de Lama, em Oeiras – Helena Abreu escreve: “Os militares temeram o aumento da temperatura dentro do paiol e previram que este iria explodir. Foram chamadas quatro corporações de bombeiros para tentar suster o desenvolvimento dos fumos e consequente subida da temperatura. O facto de, numa noite trágica como aquela, se ter empregado um elevado número de bombeiros para acudir ao paiol dá-nos a medida do risco e da gravidade da situação.”

Para perceber isso, basta, aliás, olhar para a lista de armamento, um dos documentos que conseguiu recolher na sua pesquisa. No Paiol do Carrascal estavam 138 granadas de mão de fumo, 254 granadas de mão de fumo (laranja), 100 potes de fumo de 1 quilo. Nas armas classificadas como incendiárias, encontravam-se 1160 granadas de mão incendiárias e 50 quilos de napalm – um dado que vem apenas confirmar aquilo que há muito se sabe, que o napalm foi usado na guerra colonial.

A lista continua com “ignidores e cordões” e “explosivos” que incluem 300 quilos de amonal, 1920 quilos de T.N.T. em petardos, 150 quilos de T.N.T. em pó, além de outro “equipamento de destruição” classificado na rubrica “diversos”.

Não se sabe de quanto tempo precisaram os bombeiros das corporações de Algés, Dafundo, Linda-a-Pastora e Lisboa, para dominar a situação. O que se sabe é que, depois do alerta das quatro da madrugada, às 7h10 minutos dá-se a explosão. E sabe-se também que explodiu apenas 2% do paiol. Caso o incêndio tivesse alastrado e atingisse o restante material poderia ter-se dado uma tragédia de proporções inimagináveis.

“Provavelmente eu não estaria aqui”, diz Helena, que confessa que quando iniciou esta investigação quis perceber até que ponto a sua memória do sucedido estava distorcida. “O assunto parecia não ter grande importância, uma vez que nunca foi estudado nem mencionado nos estudos académicos nem nas efemérides da tragédia das cheias. A ponto de eu própria duvidar das minhas lembranças e achar que tinha vivido o acontecimento de forma mais dramática e emotiva do que a maioria das pessoas.”

O pior foi evitado, mas o risco era realmente enorme. Os habitantes do Alto dos Barronhos, um bairro de lata onde viviam cerca de 3000 pessoas, tiveram que ser acordados a meio da noite, e em pijamas e camisas de dormir, levados para a auto-estrada que ficava a um quilómetro de distância, onde permaneceram até serem encaminhados para outros abrigos.

“Ouviu-se um grande estrondo e não escapou nada"

O paiol, construído em 1906 e alargado em 1960, tinha as medidas de segurança necessárias para um local com aquelas funções. O problema era ter, ao longo dos anos, ficado rodeado por bairros, situando-se em 1967 muito próximo do Alto dos Barronhos. Tinha à volta uma vedação de arame alta, em redor desta uma sebe de arame farpado com torres de vigilância e, à entrada, duas casas, a do guarda e a do fiel, que acabaram destruídas na explosão. Visto de fora parecia enterrado devido aos altos taludes de terra construídos à volta. Havia um sistema de escoamento das águas mas que com as chuvadas daquele dia se revelou claramente insuficiente.

O material militar encontrava-se aí armazenado e, sempre que era necessário enviar um carregamento para África, eram chamadas pessoas que vinham proceder ao embalamento. No dia que antecedeu a trágica noite das cheias, várias pessoas, vindas do Depósito de Material de Engenharia de Alcântara, estiveram a cumprir essa função no paiol, preparando um carregamento que deveria partir no dia 27 de Novembro, segunda-feira. Esse trabalho terminaria pelas 17h.

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Planta do Paiol do Carrascal, em Linda-a-Velha, onde estava armazenado material militar que deveria seguir para a guerra em África daniel rocha sobre planta do Arquivo do exército

A hipótese que Helena Abreu levanta, com a colaboração do coronel de engenharia José Santos Coelho, que a ajudou a perceber detalhes técnicos, é que as condições de segurança estivessem fragilizadas porque “em vésperas de expedição e devido à necessidade de constituição de lotes, organizados de acordo com as solicitações de envio, haveria proximidade de materiais que não deveriam coexistir no mesmo espaço”.

Ao P2, o coronel explica, a partir da leitura do relatório, que o sistema de escoamento entupiu devido à violência das chuvas, a água subiu até um metro de altura e ao chegar aos potes de fumo e às bombas fumígeras fez com que nestas se desencadeasse a reacção que iniciou o incêndio, que acabaria por chegar ao material explosivo. A existência dentro do paiol dos muros de separação em terra, que tinham como função precisamente dirigir para cima uma eventual explosão, terá evitado uma catástrofe maior.  

A explosão provocou uma cratera de quatro metros de profundidade e oito de diâmetro, mas o fogo não se propagou aos outros explosivos. De acordo com os jornais, houve apenas 16 feridos, mas muitíssimos estragos materiais – enumerados no relatório “doloroso e forçado” feito logo no dia 28 pelo presidente da Câmara Municipal de Oeiras, António Bernardo da Costa Cabral de Macedo.

“Ouviu-se um grande estrondo e não escapou nada. Ficou tudo com os vidros partidos”, contou, a Helena Abreu, Álvaro Alcobia, da Sapataria Alcobia, de Linda-a-Velha. “As pessoas começaram todas a sair de Linda-a-Velha, eu fui para a Costa da Caparica. As portas e janelas, ficou tudo aberto, a GNR fez uma patrulha excepcional durante noite e dia, a cavalo e a pé. As casas ficaram praticamente todas abandonadas.

O caso parecia encerrado. Mas não estava.

Na madrugada de segunda-feira, 27, um rumor espalha-se por Linda-a-Velha, Algés e mais além. Dizia-se que o resto do material do paiol ia rebentar e a palavra de ordem era: fujam. Essa é a memória mais forte que Helena guarda, mais ainda do que a da própria explosão: a imagem das pessoas, totalmente desorientadas e sem qualquer apoio das autoridades, a fugir para todos os lados. “Em Algés falava-se até de ogiva atómica”, conta.

“As pessoas só diziam ‘para a praia, todos para a praia de Algés’”, descreve no seu texto. “E via-se a população toda em pânico a correr para a praia, a atravessar a linha do comboio. Um pânico completamente irracional. O meu pai, que gostava de exibir a sua fleuma de alentejano, declarou que ficaria na varanda a ver. Levou para lá uma cadeira de lona e ficou toda a manhã a observar o pânico dos outros.”

Helena ouviu também o testemunho de um ex-bombeiro de Barcarena, José Fulgêncio, que confirma que os bombeiros, também apanhados pelo rumor, deram ordem de evacuação, mas, sem directivas claras, as pessoas fugiam para os piores sítios. “Fugiu tudo lá para cima para o monte. [...] Não tínhamos inteligência nem cultura. Iam-se pôr na boca do lobo que era a fábrica da pólvora. O paiol ia rebentar e a fábrica também porque tinha pólvora preta, negra, pólvora que rebenta por simpatia.”

Outra testemunha, Anabela Simão, da Junqueira, recorda o episódio da professora que entregou a prima dela, de sete anos “a um suposto senhor que ela conhecia” e fugiu. Correu tudo bem, a prima ficou sã e salva, mas ficamos sem saber o que fez a professora a todos os outros alunos antes de se pôr em fuga.

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As zonas baixas de Vila Franca de Xira até Oeiras foram tomadas pela lama: casas e lojas inundadas, carros arrastados, as ruas submersas arquivo nacional torre do tombo

Como num filme de Cecil B. De Mille

Nunca se soube onde começou o boato. A PIDE andou a fazer perguntas, o Diário de Notícias classificou-o como “torpe”, admitindo que tivesse vindo de “forças tendenciosas” da oposição. O mais natural, no entanto, é que tivesse surgido espontaneamente, sabendo-se que 98% do material não tinha chegado a explodir. E, sem a presença de autoridades que tentassem esclarecer as pessoas e evitar o pânico, a situação fugiu de qualquer controlo – “Algés parecia um filme de Cecil B. De Mille, tudo a fugir para a praia”, conta uma das pessoas ouvidas por Helena.

E, no seu relatório, o presidente da Câmara de Oeiras não evita as críticas. Referindo que a calma só foi restabelecida cerca das 13 horas, tendo o episódio deixado na população “uma ferida profunda”, escreve: “[e deixou] em nós, responsáveis, a certeza de que certos e determinados organismos, mas sem o sentido de ofender ninguém, falharam, nomeadamente a Defesa Civil do Território, que aquando do pânico sabiamente propagado dentro do concelho, e levianamente aceite por entidades responsáveis, não tomaram uma atitude concernente com a aceitação voluntária da sua missão.”

Helena Abreu não esqueceu aquelas duas madrugadas e, por isso, agora quis regressar a elas para fazer “o guião provável dos acontecimentos, com muitas, muitas interrogações”. Quis fazê-lo por várias razões: “Porque o vivi, e porque ninguém toca nisto só porque não morreram centenas de pessoas – não morreram mas podiam ter morrido e a ferida profunda que deixou naquelas que o viveram foi impressionante”.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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