Na era de Trump, os xerifes levantam a voz

Com o respaldo de um presidente politicamente incorrecto, os xerifes conservadores sentem-se à vontade para endurecer o seu discurso – e as acções das forças policiais que dirigem.

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JOSHUA LOTT/REUTERS

Na noite das eleições presidenciais norte-americanas, o xerife Wayne Ivey estava tão ansioso que se fechou em casa e ligou o iPad a uma tela de projecção que mostrava o mapa eleitoral. Cada vez que era declarada a vitória de Donald Trump num estado, Ivey soltava um grito de alívio. Ao fim da noite, o sonho era real: ao elegerem Trump, os eleitores tinham também demonstrado o seu apoio à marca registada de Ivey — uma política conservadora insolente e politicamente incorrecta.

“Ele nunca desiste”, diz Ivey, xerife do condado de Brevard, que inclui Cape Canaveral e vários destinos de praia ao longo da costa leste da Florida. “Não tem medo de marcar uma posição, e é disso que precisamos.” Com o seu boné vermelho “Make America Great Again” orgulhosamente visível no seu escritório, Ivey faz parte de uma onda de xerifes de condado que se sentem encorajados pelo presidente Trump e o seu programa, e que se estão a tornar veementes soldados rasos nas irascíveis guerras políticas e culturais que o país atravessa.

Desde estados marcadamente democratas como o Massachusetts ou Nova Iorque até baluartes tradicionalmente conservadores do Sul e do Midwest, xerifes eleitos localmente têm emergido como alguns dos mais fervorosos defensores do Presidente. Corroboram a narrativa de Trump em tudo, sejam discussões políticas sérias sobre temas como a imigração ou querelas efémeras com os jogadores da NFL que se ajoelham durante o hino nacional.

Os xerifes replicam o polémico estilo político de Trump, alarmando progressistas e observadores que temem um sistema de Justiça cada vez mais indisciplinado. Alguns têm mesmo entrado em conflito com governantes democratas, opondo-se às suas medidas “politicamente correctas” e fazendo uso de uma retórica que tem preocupado alguns residentes.

“Os membros das forças policiais e os xerifes parecem estar hoje mais confortáveis para exprimir pontos de vista controversos e pró-encarceramento do que em anos recentes”, diz Daniel Medwed, professor de Direito e Justiça Criminal da Northeastern University, em Boston. “Quando temos um presidente que se sente confortável em dizer coisas que os seus antecessores não diriam, isso encoraja outras pessoas a dizerem o mesmo.”

Ao longo dos últimos nove meses, vários xerifes foram filmados a afirmar que iriam chamar o serviço de imigração para lidar com residentes sem documentos, a ameaçar barrar a entrada de agressores sexuais em abrigos no caso de haver um furacão e até a propor o envio de reclusos para ajudarem na construção do muro, na fronteira com o México, prometido por Trump.

No mês passado, um xerife da Louisiana chegou a sugerir que os “bons” reclusos deviam ser mantidos na prisão, para que cozinhassem, limpassem e lavassem veículos.

Em Titusville, Ivey está a apelar a todos os seus eleitores para que peguem em armas e formem uma milícia do condado. “A voz dos xerifes serve para ajudar o Presidente e o procurador-geral [equivalente a ministro da Justiça] a tomarem conhecimento do que se está a passar, das crises e das modas que vão acontecendo, para que possam pôr leis em vigor”, declarou Ivey, que representa um condado onde Trump venceu por uma margem de 20 pontos percentuais.

Donald Trump tem cultivado uma forte aliança com os agentes das forças policiais do país. Uma semana após a tomada de posse, assinou uma ordem executiva instruindo o Departamento de Segurança Interna para ordenar aos funcionários locais que fizessem cumprir as leis federais de imigração, reanimando assim uma política que Barack Obama tinha restringido. No início de Fevereiro, Trump convidou 12 xerifes para uma reunião na Casa Branca, na qual prometeu reprimir a violência dos gangs de Chicago e construir o seu tão referido muro fronteiriço.

À saída da Casa Branca, a delegação ofereceu a Trump uma pequena estátua de um xerife com um chapéu de cowboy. Foi a primeira vez, disseram, que a Associação Nacional de Xerifes presenteou um não-xerife com a estátua.

Voz grossa

A imagem do xerife conservador e defensor da lei e da ordem não é nova. Desde os primórdios da existência de forças policiais americanas que os xerifes conservadores e de “voz grossa” estão ligados à História política e cultural do país. Durante a presidência de Obama, Joe Arpaio, de Phoenix, e David Clarke, de Milwaukee, ficaram célebres pelas suas opiniões controversas (em Agosto, Arpaio recebeu um perdão de Trump relativamente a uma acusação de desrespeito ao tribunal, ao passo que Clarke se demitiu do seu cargo).

Contudo, os analistas e os observadores estão surpreendidos com o aumento da retórica e da influência política dos xerifes conservadores, que por sua vez reflecte o endurecimento do debate político nos EUA.

“O Presidente está a dividir o país, e isso manifesta-se na forma como alguns agentes policiais fazem o seu trabalho”, afirma Isaiah Rumlin, presidente da delegação da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor do condado de Duval, na Florida.

Logo nas primeiras semanas da presidência de Trump, xerifes de vários pontos do país declararam terem tido produtivas reuniões com o Departamento de Segurança Interna sobre como trabalharem em conjunto para fazer progredir o programa do Presidente, inclusivamente na questão da imigração.

No condado de Beaufort, na Carolina do Sul, o xerife P.J. Tanner não perdeu tempo em reatar um programa que permitiria que os seus agentes trabalhassem em conjunto com a Imigração na detecção de estrangeiros sem visto de residência.

“Sentimos que agora temos um presidente que defende intransigentemente o mesmo que nós, que é a protecção dos cidadãos dos Estados Unidos”, disse Tanner numa entrevista, acrescentando que os seus agentes podem ser “as forças no terreno” dos agentes federais.

Em Oklahoma, o cepticismo da Administração relativamente a alterações às leis sobre posse de drogas e à reestruturação do sistema de sentenças também revigorou os xerifes locais. Depois de o procurador-geral, Jeff Sessions, ter discursado perante a Associação de Xerifes de Oklahoma no mês passado, o grupo comprometeu-se a redobrar esforços para reverter uma iniciativa aprovada pelos eleitores do estado no ano passado que transformava delitos menores de posse de droga em infracções leves.

Outros xerifes estão a apoiar Trump de formas mais subtis, validando a sua conduta nas suas localidades. No condado de Geauga, no Ohio, o xerife local proibiu os seus agentes de fazerem segurança nos jogos dos Cleveland Browns após Trump ter inflamado a sua disputa com a liga de futebol americano NFL.

Com mais de três mil xerifes a nível nacional, quase todos eleitos, o grupo é tudo menos homogéneo. Os xerifes das áreas urbanas continuam a tender para o Partido Democrata, e muitos têm opiniões progressistas sobre a reforma das sentenças, o combate ao tráfico de droga ou a imigração. Rumlin, por exemplo, aplaudiu quando vários xerifes, incluindo o de Jacksonville, repudiaram as declarações de Trump quando este afirmou, no Verão, que a polícia devia ser mais dura no transporte de prisioneiros.

Porém, a crescente influência dos xerifes conservadores é notória até pelo facto de o seu número ter aumentado consideravelmente, diz Richard Rosenfeld, professor de Criminologia na Universidade do Missouri, em St. Louis.

Mesmo em comunidades politicamente moderadas, alguns xerifes locais têm-se tornado acérrimos defensores de Trump e das suas causas. Tim Howard, o xerife do condado de Erie, já desafiou publicamente uma ordem do governador de Nova Iorque, o democrata Andrew Cuomo, instruindo os agentes das forças de segurança estaduais a absterem-se de perguntar a indivíduos o seu estatuto em termos de imigração. “Como xerife, parte do meu trabalho é fazer cumprir a Constituição e a lei, independentemente dos reles créditos que os políticos de Albany queiram ganhar”, disse Howard.

Ryan Lenz, investigador do Southern Poverty Law Center, diz que a actuação recente dos xerifes conservadores reflecte uma tendência mais abrangente que sugere que, em muitas partes do país, as autoridades policiais estão a virar ainda mais à direita.

Lenz aponta para a crescente influência dos “xerifes constitucionais”, um termo com génese nos anos 70 que ganhou visibilidade nos últimos anos em face das preocupações da América rural em relação às políticas de Obama. Esses xerifes comprometem-se a ignorar leis federais que considerem que infrinjam os direitos constitucionais dos seus eleitores.

Richard Mack, diretor executivo da Associação dos Xerifes Constitucionais e dos Oficiais da Paz, elogiou um xerife do interior do Oregon que apoiou uma milícia armada e anti-Governo que ocupou um refúgio de vida selvagem federal, provocando uma confrontação.

Segundo Lenz, esperar-se-ia que o movimento dos xerifes constitucionais perdesse força pelo facto de a Casa Branca ser agora ocupada por um presidente menos hostil. “Mas não é isso que estamos a ver e isso é uma consequência das eleições de 2016”, diz Lenz, cuja organização identifica grupos extremistas. “Por toda a direita radical, ideologias extremistas que existiam na periferia da política americana viram a sua legitimidade subitamente reforçada.”

Pertencentes a um condado tradicionalmente conservador, muitos residentes de Titusville consideram que Ivey — com o seu humor e índole efusiva — é até bastante convencional. Mas o xerife não hesita em afirmar-se também ele como um “xerife constitucional”: há três anos, tatuou no braço esquerdo o preâmbulo da Constituição, e intitula-se o “xerife mais politicamente incorrecto” do país.

Após ter sido eleito pela primeira vez em 2012, Ivey instituiu a única chain gang [método de acorrentar os prisioneiros uns aos outros] prisional da Florida. É também protagonista de um vídeo semanal no Facebook chamado “Roda do Fugitivo”, onde mostra a cara de pessoas procuradas pela polícia. E ainda se vangloria de que a prisão do condado de Brevard gasta o mínimo que é nutricionalmente possível nas refeições dos reclusos — cerca de 99 cêntimos/dia por recluso.

No Nordeste da Florida, teme-se que a agenda de Trump, aliada a um xerife que tem a reputação de defender a “lei e ordem”, vá apenas fazer piorar as históricas tensões entre as forças policiais e algumas comunidades.

Nos arredores de Jacksonville, Florida, o republicano Darryl Daniels, o primeiro xerife afro-americano da história do condado de Clay, tem vindo a tentar fazer brilhar as suas características de “lei e ordem” ao autorizar os seus agentes a usarem “calças de ganga e botas” à sexta-feira. Chapéu de cowboy na cabeça, disse em entrevista à televisão WJXT que o objectivo do novo visual era fazer os criminosos ficarem com medo e prestar tributo “a tempos mais calmos, em que as pessoas sabiam quem era o xerife”.

“As pessoas estão assustadas”, diz o assistente social Indy Moran, que é hispânico. “Isto não é o Texas. Há muitos agricultores por aqui, e se eles querem vestir esse traje, tudo bem. Mas para agentes da autoridade, acho que é ridículo e mostra bem o seu pensamento e os seus valores.”

Mas Wayne Ivey diz que os críticos não estão a entender a principal mensagem das eleições de 2016. Seja o Presidente ou o xerife local, afirmou, muitos americanos querem líderes que “digam o que pensam”.

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