A nova era

Uma distopia pós-apocalíptica escrita nos anos em que o mundo já se precipitava para a Segunda Grande Guerra.

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Régis Messac (n. 1893), ensaísta, jornalista e romancista, morreu em data incerta num campo de concentração

Este romance de título quase impronunciável, Quinzinzinzili, foi escrito em 1935 (já quase sem tempo para ser lido como um alerta para a nova guerra que se adivinhava), e apresenta-se como uma distopia radical em que a civilização se aniquila a si própria, quase como se estivesse a executar um desejo íntimo, ou a cumprir o destino de maneira inexorável. O seu autor é o francês Régis Messac (n. 1893), ensaísta, jornalista e romancista, que morreu em data incerta num campo de concentração para onde fora deportado. Durante os anos que antecederam a Segunda Grande Guerra foi um prolífico autor de inúmeros e polémicos artigos (assinou bastantes com diferentes pseudónimos), quer literários, filosóficos, ou mesmo científicos, em que nunca escondeu a sua simpatia pelo anarquismo não violento, nem se coibiu de criticar de forma mordaz e assertiva os seus muitos ódios de estimação: a religião, os militares, os corruptos, a família tradicional, as privações e os julgamentos morais a que as mulheres eram sujeitas. Em França, Régis Messac ficou conhecido como um dos precursores da ficção científica ao ter organizado a colecção Les hypermondes, que foi, aliás, inaugurada com esta distopia que a editora Antígona agora traduziu.

A acção do romance é narrada num tempo pós-apocalíptico. O mundo entrara em guerra, e foi do lado oriental que a engrenagem se pôs em marcha: a Rússia e o Japão abriam hostilidades, um oficial japonês decide bombardear Honolulu e fazer depois hara-kiri, as tropas de Hitler entram na Ucrânia, Goering faz ofertas de aliança a França – note-se que quando Messac escreveu este cenário de ‘História alternativa’, corria o ano de 1935. Entretanto, no tempo narrativo de Quinzinzinzili, a fórmula de aniquilação do mundo já tinha sido concebida no cérebro de um demiurgo do mal. Um cientista japonês inventara um gás pesado, e uma vez iniciado o processo de reacção química, a mistura de oxigénio e azoto que forma a nossa atmosfera transformava-se subitamente num composto irrespirável. Ao mesmo tempo, esse fenómeno era acompanhado por perturbações atmosféricas de uma fúria inaudita, apenas comparáveis ao que os cientistas pensavam ter acontecido nos primórdios do planeta.

Depois desta catástrofe, sobrevivem numa gruta perto de uma aldeia da Lozère, na região montanhosa do Languedoc-Roussillon, um adulto (o narrador) e nove crianças. São, aparentemente, o que resta da Humanidade. É com estas personagens que Messac parte em busca do essencial de uma civilização, descrevendo aos poucos uma ordem que se forma a partir do caos, em como os conhecimentos e os valores trazidos da civilização extinta não servem, naquela situação extrema, para quase nada, pois tudo foi aniquilado. “O que vou escrever não constituirá a melhor prova da imensa loucura da civilização?”

No fundo de uma caverna, que por ironia voltou a ser “pré-histórica”, o narrador vai rabiscando aquelas linhas, com um resto de lápis, num caderno de notas encontrado por acaso na mochila daquele que era o guia (agora morto) do grupo antes do cataclismo. As crianças estavam todas, à época, a fazer uma cura de altitude num sanatório para tratamento da tuberculose. Depois do choque inicial que se seguiu ao ‘apocalipse’, o grupo começou a consolidar-se e a transformar-se numa espécie de sociedade, uma pequena tribo de selvagens, que com o passar dos anos (quatro ou cinco) se vai tornando estranha ao narrador e, por vezes, quase hostil, chegando este a pensar que o poderiam matar. É por isso se mostra sempre cínico, não os ajudando nem fazendo uso do que lhe ficou dos tempos idos na memória, e repetindo a frase: “Estou-me nas tintas para tudo, agora.”

É o tempo de uma nova era: não há pássaros, o céu foi purgado de criaturas voadoras e de insectos alados, incluindo moscas, alimentam-se de pequenos animais (os grandes desapareceram), entre eles toupeiras e serpentes; uma vez ainda avistaram um lobo, mas matararam-no. As crianças acabam por esquecer quase tudo, já não se lembram do que é uma roda, por exemplo; a morte é-lhe também estranha, os valores morais quase não existem. Acendem, ainda enquanto têm alguns fósforos encontrados numa caixa, uma fogueira que não deixam apagar; com o passar dos anos, e com as poucas memórias, criaram uma linguagem própria, têm “uma explicação própria do mundo, hábitos, em suma, um género próprio de vida”. É nessa nova linguagem que surge a palavra que titula o romance, Quinzinzinzili, uma corruptela da expressão latina “Qui est in coelis”, que surge das lembranças da catequese que frequentaram no outro tempo. A palavra passa assim a ser o equivalente ao nome de deus, ou de uma força que tudo controla (sobretudo as cólicas intestinais) e que temem. “A religião é, sem dúvida, o que melhor resistiu à catástrofe”, escreve o narrador. Do resto, têm apenas aquela “existência miserável em plena barbárie”.

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