Para que serve a rádio?

Se Pedro Rolo Duarte aqui estivesse, com certeza diria a esta nova geração que fazer rádio é muito mais do que ter a ilusão de ser engraçado.

Tenho muito respeito pela inteligência e pela subtileza dos portugueses e pela sua original insensatez quanto a muitos assuntos. A verdade é que não necessito de invocar exemplos de brilhantismo nos mais variados domínios: seria uma lista entediante, somente para recriação patriótica. Mas não se dá conta da deriva em que a rádio vai e de como alastra a falta de respeito pela generalidade da população. A vitalidade da vergonha não tem vergonha. E porque é preciso falar dela, vamos a isso.

Há dias, o jornalista Sena Santos, na sua crónica diária “Um dia no mundo”, lembrava o director do diário italiano La Repubblica, Mario Calabresi, a propósito daquilo que compromete um jornal: “dar ao seu leitor qualquer coisa de necessário e funcional”. Pode parecer pouco, mas também o entretenimento inteligente é necessário. Rir é bom; ler e ouvir música é fundamental. E tudo isso é possível sem perder rigor. Tem-se falado em degradação da língua, com o novo Acordo Ortográfico, gerador de “mil estilos” em sacrifício do estilo hierático da língua. Todavia, esquece-se a responsabilidade dos órgãos de comunicação de iniciativa e gestão privadas, mas de competência pública significativa, no cumprimento de padrões mínimos de exigência profissional e de serviço público — porque é de públicos e de audiências que estamos a falar.

Pedro Rolo Duarte, um dos homens da rádio que lutavam contra a cultura do vazio e da boçalidade profissional no seu meio, acaba de falecer. Fazia, como muitos profissionais da RDP ou da TSF, uma prova de resistência, mantendo a fasquia elevada e afastada da tagarelice em que os programas generalistas e de propensão para o entretenimento caíram. É preciso recuar ao início da iniciativa privada para descortinar algumas virtudes da emissão radiofónica, mas nesse tempo pagava-se o custo de um certo dogmatismo: depois, veio a suprema civilização de massas, a democracia do palavreado e da imbecilidade.

O mau gosto nas emissoras de rádio não é inevitável. A sua persistência, porém, é um verdadeiro indicador de decadência sem brilho e de baixa exigência profissional e intelectual. A rádio está cheia de pseudo-humoristas sem graça e incapazes de perceber que, na maior parte do tempo em que se atropelam em frases entre-cortadas e imperceptíveis, estão a falar e a rir entre si e para si: nada daquilo envolve o auditório. É como se os ouvintes estivessem fora do círculo de amigos que une o grupelho de gaiatos, os locutores, recrutados sabe-se lá por que critérios para além de ostensivas gargalhadas. Entregues a miúdos que intoxicam o silêncio com disparates e ruído, os programas de rádio levam-nos às lágrimas pela sua vulgaridade, cada vez mais próxima da de certos programas televisivos vespertinos. É uma turba de falsários incapazes de proferir uma frase complexa que seja e de ascender a qualquer coisa de asseado e de decente quanto a conteúdos. E nem a música, actualmente mais refém de playlists duvidosas e repetitivas, higieniza o cenário. A música agora é outra: a da subjugação aos ditames económicos, aos patrocínios, à sponsorização, ao branding e a quaisquer outras formas privadas ou públicas de financiamento dos custos da actividade de radiodifusão.

Não vai ser fácil sair do atoleiro em que estamos metidos. Mudar de estação de rádio, de dois em dois minutos, não será certamente a solução. Mas é tempo de perceber que boas emissões de rádio, que incluem conversa, debate, música, crónica, informação, documentário ou reportagem, não se fazem sem profissionais qualificados para as funções que desempenham e não apenas bem-humorados, ufanos de si mesmos e prontos a partir a louça. Porque uma rádio, para continuar com Calabresi, “deve desenvolver um papel fundamental para a democracia acrítica, deve proporcionar o luxo de um olhar amplo sobre o mundo, fornecer o mapa claro que nos permita orientarmo-nos no caos que é o mundo em que hoje vivemos”. Julia Cagé alerta para a fragilidade e vulnerabilidade dos meios de comunicação. Vivemos numa escala de erros, de que o mais recente é reconhecer no entretenimento um lugar cimeiro na hierarquia da comunicação radiofónica.

Se Pedro Rolo Duarte aqui estivesse, com certeza que apelaria a um mais apertado controlo de qualidade e diria a esta nova geração que fazer rádio é muito mais do que ter a ilusão de ser engraçado e ter um microfone aberto em frente à boca. É uma pena que uma série de emissoras de radiodifusão nacionais celebrem as manhãs dos portugueses com uma estupidez tão contentinha e serôdia e com o triunfo do banal. Ao menos a música. Que dias, estes dias da rádio.

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