Esta carta de um judeu grego que sobreviveu a Auschwitz esteve 70 anos à espera de ser lida

Foi escrita em 1944 e enterrada perto de um dos fornos crematórios deste complexo de extermínio na Polónia. Descoberta em 1980, só agora viu o seu conteúdo decifrado. “Não tenho medo de morrer”, escreve o soldado. “Afinal, como posso eu ter medo depois de tudo o que os meus olhos viram?”

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Prisioneiros do complexo de concentração e extermínio de Auschwitz Rui Gaudêncio

Marcel Nadjari, um judeu grego que servia no Exército, chegou ao complexo de campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau em Abril de 1944, depois de uma viagem de dez dias. Tinha 27 anos e fora capturado pela SS em Atenas. Dois anos antes, também os seus pais e a sua irmã tinham para ali sido deportados. Nadjari não chegaria a vê-los.

Chegado ao Sul da Polónia tornou-se um Sonderkommando, nome dado aos prisioneiros que eram forçados pelos nazis a executar uma série de tarefas terríveis dentro dos campos, como limpar as câmaras de gás, retirar os cabelos e os dentes de ouro aos mortos e transportar os corpos para os fornos crematórios.

Marcel Nadjari seria mais um dos prisioneiros judeus obrigados a participar da Solução Final, perdido no meio de milhões de pessoas sujeitas aos crimes de guerra nazis, se não tivesse sido o autor de um impressionante testemunho, escrito sob a forma de uma longa carta dirigida a familiares e amigos, que enterrou em Auschwitz.

Essa carta escrita em grego foi descoberta por um estudante nos anos 1980, mas o seu conteúdo estava inacessível. Começou a ser divulgado em Outubro e só nos últimos dias ficou integralmente disponível em inglês, levando a imprensa alemã e belga a regressar, em detalhe, à história deste inestimável documento.

O facto de ter estado debaixo de terra durante quase 40 anos, sujeita à acção da humidade embora fechada numa espécie de termo guardado dentro de uma bolsa de couro, precisa o jornal belga francófono Le Vif, tornou a carta ilegível (só algumas palavras eram perceptíveis). Agora, e graças à colaboração entre um especialista informático, Aleksandr Nikitiaev, e um historiador, Pavel Polian, foi possível aceder a cerca de 90% do testemunho do homem que tantos cadáveres transportou para os crematórios.

Recorrendo a uma técnica que lhe permitiu, a partir de imagens digitais da carta, salientar os trechos que eram invisíveis a olho nu, Nikitiaev ajudou a “redescobrir” o documento que Polian decifrou.

“Não tenho medo de morrer”, escreve o soldado grego, “afinal, como posso eu ter medo depois de tudo o que os meus olhos viram?”.

A carta, com 13 páginas manuscritas é dirigida a três pessoas, entre elas ao amigo Dimitris, a quem chama Misko, e foi escrita entre meados de Outubro e finais de Novembro de 1944, aparentemente na esperança de que viesse a ser encontrada e pudesse servir de testemunho. Nadjari acreditava que os nazis chegariam a exterminar todos os judeus e receava que os crimes do III Reich ficassem por denunciar.

Com uma certa ironia

No documento que enterrou numa floresta perto do crematório n.º 3 de Auschwitz, Marcel Nadjari faz uma descrição pormenorizada de todos os horrores a que assistiu diariamente e diz que quer ver os crimes nazis expostos: “Este é o meu último desejo. Condenado à morte pelos alemães porque sou judeu.”

A sua carta, que é também um testamento, faz parte de uma série de nove documentos conhecida como os Pergaminhos de Auschwitz, todos escritos – e escondidos - por homens do Sonderkommando. Pavel Polian está a estudá-los há dez anos, segundo o site da Smithsonian, instituição norte-americana dedicada à cultura e ao conhecimento.

Estes nove relatos têm cinco autores e estão na sua maioria redigidos em iídiche (o de Nadjari é o único em grego). “São os documentos mais centrais do Holocausto”, disse o historiador russo à empresa de radiodifusão alemã Deutsche Welle, defendendo, tal como outros colegas, que haverá ainda outros relatos semelhantes à espera de serem descobertos.

Na carta de 13 páginas, e apesar do contexto terrível em que vive, Nadjari não abdica, nalguns trechos, de um certo tom irónico, sarcástico até: “[…] Ficámos aproximadamente um mês em quarentena e depois deslocaram-nos, tanto os saudáveis como os doentes. Para onde? Para onde, querido Misko? Para um crematório. Vou explicar-te em baixo o trabalho adorável que o Todo-poderoso quis que fizéssemos.”

Em seguida, o soldado transformado em Sonderkommando  fala de um grande edifício com uma chaminé larga e 15 fornos. Por baixo do jardim, diz, há duas grandes caves – uma serve para os prisioneiros se despirem, a outra é uma câmara de execução. Nesta última as pessoas entram nuas e, quando já lá estão “aproximadamente três mil”, a porta é selada e todas são gaseadas. “Respiram pela última vez depois de seis ou sete minutos de martírio”, escreve, a maioria sem sequer ter chegado a suspeitar do que estava prestes a acontecer-lhe, acreditando apenas que ia tomar um duche.

“Passada meia hora abrimos as portas e o nosso trabalho começa”, continua Nadjari, presumindo que a sua própria morte não tardará. “Carregamos os corpos destas mulheres e crianças inocentes para o elevador que as transporta para a sala com os fornos, e é aí que as põem nos fornos, onde ardem sem qualquer combustível por causa de toda a gordura que tinham.”

Garante o soldado que um corpo produz cerca de 640 gramas de cinzas e de pequenos ossos, fragmentos que os militares alemães presentes obrigam os Sonderkommando a esmagar para que todos os vestígios dos prisioneiros gaseados e queimados possam depois ser lançados ao Rio Vístula, nas imediações, procurando dissimular o rasto de tais atrocidades. “Os dramas que os meus olhos viram são indescritíveis.”

Viver para vingar os pais e a irmã

Marcel Nadjari conta ainda aos três destinatários da carta - o amigo Dimitris (Misko) Stefanidis; Ilias Koen, seu primo e membro da resistência executado em 1944; e Georgios Gounaris, uma mulher grega cuja fotografia levou para Auschwitz – que fazia parte de um grupo de cerca de 1000 prisioneiros a que os nazis chamavam “unidades especiais” (os Sonderkommando) e que esperava ser eliminado como os milhares de pessoas – judeus húngaros, polacos, gregos, franceses - que tinha já transportado para os fornos.

Consciente de que, caso chegasse às mãos dos destinatários, o seu testemunho levaria a muitas perguntas sobre a sua própria conduta, Nadjari antecipa-se: “Meus queridos, quando estiverem a ler sobre o trabalho que fiz dirão - Como fui capaz, eu Manolis [nome que chama a si mesmo], ou qualquer outra pessoa, de fazer este trabalho e de queimar [outros] companheiros crentes. No começo disse a mim mesmo a mesma coisa, [e] muitas vezes, pensei juntar-me a eles para acabar com tudo. O que me impediu de fazer isso foi a vingança. Eu queria e quero viver para vingar as mortes do [meu] Pai e da [minha] Mãe, e a da minha adorada irmãzinha Nelli.”

Ao contrário do que previra, o grego Marcel Nadjari sobreviveu a Auschwitz, acabando por morrer em 1971, aos 54 anos, nos Estados Unidos, para onde emigrara com a mulher, trabalhando como alfaiate. Chegou mesmo a escrever as suas memórias de guerra, em 1947, quando estava ainda em Tessalónica, a cidade em que nasceu, mas aparentemente nunca falou da longa carta que tinha enterrado na Polónia.

“Lembra-te de mim de vez em quando, assim como eu me lembro de ti”, diz a Misko, o amigo a quem deixa as propriedades da família, contando que ele acolha o seu primo, Ilias. “Sempre que alguém perguntar por mim, diz simplesmente que eu já não existo e que parti como um verdadeiro grego.”

Já quando a carta está perto do fim, é na irmã que o soldado volta a pensar: “Por favor, Misko, vai buscar o piano da minha Nelli à família Sionidou e dá-o a Ilias para que o tenha sempre consigo […], ele amava-a tanto e ela amava-o também.”

Segundo o diário irlandês Irish Times ou o semanário belga Le Vif, Pavel Polian, o historiador russo encarregue de decifrar o texto que as modernas técnicas informáticas recuperaram, conseguiu encontrar a filha de Marcel Nadjari para lhe entregar a carta do pai, que, 70 anos depois de ter sido escrita, foi lida em voz alta numa sinagoga de Tessalónica. Ela chama-se Nelli.

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