Sófia precisa de um transplante de coração

Os realistas e pessimistas já foram embora. Ficaram na capital da Bulgária os optimistas como Stephan Komandarev, realizador de Táxi Sófia. Aqui não há alerta spoiler. Aqui a ficção é uma dura realidade.

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“No aeroporto de Sófia, verás uma linha amarela no chão nas chegadas que te levará até à empresa oficial de táxis — OK Supertrans. Usa APENAS estes táxis.” O SMS foi-nos enviado por Stephan Komandarev, realizador que usou os táxis amarelos para sentir o pulso da sua cidade (e de um país), à beira do colapso, coração periclitante.Táxi Sófia é uma ficção, mas é a dura realidade. “É a Sófia real onde vivem e sobrevivem as pessoas reais”, descreveu no dia seguinte o búlgaro enquanto conduzia a Fugas pelos cenários do filme — um por um. É uma cidade com mais de 2,5 milhões de habitantes (e a contar) onde mais de metade vive abaixo do limiar da pobreza, é um corpo preso entre as memórias do comunismo e uma economia de mercado livre, uma transição que se transformou num “pesadelo”. É uma matriosca de zonas num mapa, com complexos habitacionais numerados, com prédios cinzentos, com pessoas, com desemprego, desespero e suicídio.

Episódio 1. Perante uma iminente acção de despejo na sua pequena fábrica de cablagem, Misho decide levar à escola a filha Nikol (Anna Komandareva é, na verdade, filha do realizador) que vai ter um teste de búlgaro (“Hoje é um grande dia. Chega de ser taxista. O teu pai quer ser número um novamente”). A estação Rádio Darik dá conta da detenção de 24 emigrantes provenientes da Síria e do Iraque. Misho, que aproveita a viagem de volta para transportar uma estudante/prostituta (“Mudo sempre de roupa em táxis. Os meus pais não sabem o que faço, têm princípios, mas não têm um tostão no bolso. Não quero acabar assim, a conduzir a merda de um táxi”), encontra-se com um agiota e, quando descobre que o valor do suborno que tem que pagar para desbloquear um empréstimo duplicou (“Neste país somos como Deus. Nós fazemos as leis. Vais pagar como toda a gente, falhado!” “Podes deitar fogo a ti próprio se quiseres”), entra no táxi, pega numa pistola, mata-o e de seguida dá um tiro na cabeça.

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Stephan chama episódios às sequências do filme (cada uma delas filmada à mão, num só plano, sem cortes), cujos protagonistas são taxistas que durante a noite vão ouvindo uma emissão de rádio com linha aberta para debater o assassinato/suicídio. “Aqui, ser taxista paga as contas. Nos anos 1990 toda a gente era taxista”, diz o realizador que fez 12 mil quilómetros pela cidade a planear tudo (pavimento com o mínimo de paralelo, o número de semáforos nos percursos, a iluminação pública...). “Podia ser imediatamente taxista”, diz ao volante do seu automóvel. “É sempre bom ter um plano B...”, sugere Stephan Komandarev, que para esta missão se inspirou precisamente numa conversa com um taxista que o conduziu em Janeiro de 2015. “Era professor de Física Nuclear da Academia Búlgara das Ciências recentemente demitido e contou-me histórias de colegas — professores, padres, músicos, oficiais militares, que dirigem os táxis à noite, lutando para sobreviver e pagar contas. Contou-me uma piada sobre a Bulgária ser um país de optimistas. Porque há muito que os realistas e os pessimistas foram embora.” A segunda inspiração foram os seus dois filhos. “Penso todos os dias nos meus filhos, em que país e em que sociedade vão viver.”

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“A única escolha aqui é entre o Terminal 1 e 2 do aeroporto”, diz no segundo episódio um cirurgião a caminho do seu último transplante (o coração do taxista suicida vai ser colocado num padeiro desempregado) antes de emigrar para Hamburgo.

— Vai para sempre?, pergunta Rada, a taxista.
— Espero que sim
— O Estado vai ficar sem médicos.
— Isto não é emigração, é evacuação do território. Não existe nenhum Estado. Está morto.
— Talvez a Bulgária possa ser salva com um coração novo.
— Nem pensar! Salvam-se os doentes, não os cadáveres.
— Boa sorte para a cirurgia.

A Stephan, nascido em 1966, não lhe interessa o chão de paralelo amarelo tipo Oz que rodeia a zona da Catedral de Alexandre Nevsky. Não lhe interessa a Sófia maquilhada. “Não é a nossa história. Não estamos a fazer turismo.” Durante 23 dias, filmou em algumas ruas do centro de Sófia, mas concentrou-se nos difíceis subúrbios da cidade, na zona moribunda, com “cenários cinematográficos”, pouca luz e estabelecimentos comerciais “NON STOP” em letras garrafais (casinos e casas de penhoras, lojas de conveniência que vendem álcool e tabaco, “símbolos da transição”, e sex shops, clubes e discotecas como as muitas que se confundem com as faculdades na Cidade Universitária, também ela palco de um episódio, filmado à porta da Illuzion). “Um pesadelo”, descreve Stephan, optimista — ainda vive em Sófia, logo optimista. “Adoro este país e quero mudar algo, provocar algo, corrigir algo. Não sou político. Já fui convidado. E recusei, claro.”

Rada (Irini Zhambonas) deixa o cirurgião à porta do Pirogov, complexo clínico construído no comunismo onde o próprio Stephan exerceu Medicina durante seis anos. Quando o seu departamento recebeu equipamento vídeo para usar com os alunos do hospital universitário, ele foi o escolhido para filmar. “Fiquei infectado pelo vírus do cinema”, recorda Stephan, que posteriormente estudou realização de Cinema e Televisão na New Bulgarian University (1999), sendo desde 2008 professor no Departamento de Cinema da New Bulgarian University em Sófia, bem como membro da Academia Europeia de Cinema e da Associação Búlgara de Realizadores de Cinema. É simbólico. O milagre pode acontecer. Na mesa de operações ou com uma câmara de filmar dentro de um táxi.

Num dos episódios, Zhoro (Assen Blatechki) tenta demover Petar (Troyan Gogov), professor que se prepara para saltar de uma ponte. É o quinto caso de suicídio deste taxista, quase um terapeuta. O professor desesperado fala sete línguas, tem dois filhos e a mulher está desempregada. Tem “um casaco” e leva “sandes para a escola”, onde sofre bullying dos alunos. É mestre em Filosofia, doutoramento na Sorbonne e ganha 600 leve/mês (algo como 300 euros). “O táxi é uma espécie de sistema social paralelo”, explica o realizador, que conhece três padres taxistas em Sófia. “Estes episódios são histórias inspiradas na realidade”, diz ao lado da placa em cirílico na ponte onde, a 17 de Janeiro de 2012, Plamen Gunev, 50 anos, parou o autocarro número 1513 que conduzia para se atirar para a linha férrea. O caso de Misho, junta Stephan, assemelha-se a “um caso famoso de chantagem em Burgas”. “Em Sailor Stories, que filmei em Varna, a cada quatro, cinco dias saltava alguém de uma ponte. Era normal para os pescadores. A estatística diz que são 70 por ano”, acrescenta o realizador. “Já neste século houve uma epidemia de suicídios por imolação”.

O fim de Sófia

Nesta Sófia ainda é possível fumar nos táxis, há táxis “falsos” — com esquemas e com taxímetro, GPS e câmbio a enganar o freguês — e até há taxistas que aproveitam as corridas para venderem sapatos e fatos com muito pouco uso. “Os mortos não precisam de sapatos”, justifica o “taxista falso” retratado por Stephan, que no ano passado apresentou Of Grateful Descendants e a história do vandalismo nos cemitérios através de Georgi Shopov, um corista de igreja, antigo professor de Química, que usa todos os momentos do seu tempo livre para cuidar dos túmulos esquecidos de alguns dos maiores nomes da história moderna búlgara. “Se a sociedade não consegue proteger o cemitério...”, suspira o realizador.

Nesta Sófia há carroças puxadas por cavalos e os eléctricos em segunda mão vieram da Suíça (a fábrica local fechou). “Importamos batatas da Polónia, tomates de Espanha... Só produzimos vinho. E já fomos o terceiro maior produtor mundial de computadores”, suspira o realizador. “Somos o país mais pobre da UE e vemos reality show de comida gourmet no canal estatal.”

“Chegar a Sófia é como voltar aos anos 1990”, diz, num episódio, um dos passageiros, regressado de viagem. No centro, 95% dos antigos cinemas são casinos ou supermercados. Nos subúrbios há milhares de carros em segunda mão à venda e uma interminável e fantasmagórica zona industrial. “Não há nada atrás destas garagens. Isto é o fim de Sófia”, aponta Stephan Komandarev mal chegamos à zona de Nadezhda (Esperança), o nome de uma das três filhas do santo padroeiro de Sófia. “Nadezhda... tem piada...” É como um filme de ficção científica em que o mundo termina atrás de uma parede. “Estão a construir mais... não sei quem vem para aqui morar.” Estamos em Nadezhda. Mas podíamos estar na vizinha Obelya ou em Lyulin, complexo residencial dividido em dez microdistritos a Oeste de Sófia, junto à montanha Lyulin, fundado em 1971 e actualmente com uma população de 114 mil habitantes. “Sófia tem muitas pessoas, demasiadas pessoas”, comentou com a Fugas nessa mesma noite um taxista OK Supertrans que divide o carro (e o cartão de visita) com o amigo Milen. “Ele conduz de dia, eu à noite.”

No último episódio de Táxi Sófia (filme distribuído em Portugal pela Alambique Filmes que estará nos cinemas a partir do dia 30 de Novembro), um padre-de-dia-taxista-à-noite conduz o padeiro desempregado entre a selva de betão e o hospital onde irá receber um coração novo. “Aqui os prédios são todos cinzentos”, diz o padre, crucifixo ao peito, crucifixo no tablier. “Um padre pode ser taxista?”, pergunta o passageiro. “A Bíblia não diz nada. Não havia táxis na altura, só camelos.” Deus abandonou este país — juntamente com um terço da população —, dizem alguns dos optimistas sobreviventes. Façam figas.

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A Fugas viajou a convite da Alambique Filmes

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